O “Tó Ruço” herdou, da mãe, um talho, no mercado da vila. Nunca foi grande artista, a cortar carnes, mas nisso era bem servido pelo “Manel Garrano”, que trabalhava, para a casa, havia mais de trinta anos. O talho da Mariana, o melhor da vila, primava pela qualidade do que fornecia.
Mestre na renova do pinhal, o “Tó” afiava o ferro como ninguém e conhecia todas as estremas. “Tirava” duas “voltas” e não constava que alguma vez tivesse renovado um pinheiro a mais, ou a menos. A vida de resineiro, completava a de marchante, que exercia, para abastecer o talho.
Levantava-se ao romper da manhã e saía, para o campo, ainda a acabar de comer a bucha. Voltava a casa para almoçar e, depois do jantar, à volta das duas horas solares, dormia a sesta, todos os dias. “Ferrava o galho”, de hora e meia a duas horas, como é costume dizer-se.
O resto do dia era gasto de quinta em quinta, ou de aldeia em aldeia, visitando os currais, na procura do que o “Manel Garrano” pedia, para o consumo normal do talho, ou para uma ou outra encomenda especial; a importância de bodas, baptizados e festas, media-se pelo número de reses que deixavam sem samarra.
Nestas actividades era acompanhado pelo fiel “serra da estrela”, que, de seu nome “herodes” e grande como um burro, trazia ao pescoço uma coleira de ferro, com picos afiados, do tamanho dos dedos do dono e dentes de lobos que matara, em anteriores refregas.
Naquele dia dos finais de Maio, chegou recado do “Manel Garrano”, pedindo quatro reses – dois borregos e duas cabritas – para uma festa de uns clientes muito especiais. E, como pedidos do “Garrano” eram ordens e interesses a respeitar, o “Tó Ruço” preparou-se para sair: foi ao curral, assobiou ao “herodes” e saíu de casa, com a garrucha de junco na mão e a jaqueta pendurada no ombro. Dois ou três passos adiante, já o “herodes” seguia, na sua frente.
Na ribeira, levantou os olhos e reparou nas nuvens negras que se levantavam para os lados do pôr-do-sol; aqueles castelos tanto podiam provocar alguma trabuzana, como não dar em coisa nenhuma, mas tinha muito respeito pelas trovoadas de Maio. As poldras saíam da água menos de um palmo e a força da corrente era considerável; apercebeu-se que a ribeira estava a engrossar; encolheu os ombros e fez-se à vida...
Antes do sol-posto estava na “Quintazinha”, onde o “Tonho” tinha o redil de um pequeno rebanho. Assobiou, assinalando a sua presença e, como que num eco, veio a resposta do pastor, que se acercava do povoado.
Na passagem do gado, lançou a mão a duas borregas e outras tantas cabritas e separou as quatro cabeças para um cortelho, ali ao lado. É disto que preciso hoje, amigo; quantas notas hei-de dar-lhe pelas quatro reses?
Os dedos do marchante agarravam as reses pelo lombo, um pouco à frente dos quadris, junto da alcatra e tanto bastava para verificar a gordura, o peso e até a qualidade do que apalpavam.
O pastor levou a mão à boina, coçou a cabeça e disse, resolutamente: você não é parvo nenhum; acertou no melhor que tenho em casa e não quero crer que haja igual na freguesia. Menos de quarenta notas ficam onde estão e olhe que uma dessas já foi rogada, ontem, à noite, e ouviu bom dinheiro. Isso é gado desenxovalhado.
O “Tó Ruço” levantou os olhos e encarou o “Tonho”, bem de frente; oh! homem, então você pensa que ando a roubar, ou quê? Já pensou a quanto tinha de vender cada quilo para arranjar dinheiro, só para lhe pagar? Vá, vamos lá fazer negócio!
O “Tonho”, com o olhar vagamente fixo, disse: trinta e seis notas e não se fala mais nisso; sempre tenho negociado com a vossa casa e o que de cá têm levado, nunca vos deixou ficar mal.
Trinta e duas notas e é negócio arrumado – atirou o marchante – e, metendo a mão no bolso da jaqueta, tirou um maço de notas e começou a contá-las. Logo o pastor atalhou e disse que nem pensasse; era ano de bons pastos e, daí a duas ou três semanas, valeriam muito mais, etc., etc.
O “Ruço” meteu as notas no bolso e disse: então você tem palavra de rei, ou quê? Racha-se ao meio e pronto!... O “Tonho” tossiu, torceu-se, voltou a coçar a cabeça e acabou por estender a mão, aceitar as trinta e quatro notas de cem mil réis e guardá-las, no bolso das calças, resmungando que já fora enganado.
Apertaram as mãos; o “Tó Ruço” atou as reses umas às outras e reparou que estava escuro como breu. Tocou o gado e a descida para o “Monte” não correu nada mal. No povoado, apenas um ou outro cão ladrou ao “herodes” que nem respondeu.
Entraram na rodeira que desce dali até à ribeira, por um piso de socalcos e profundos trilhos dos rodados das carroças. A meio da encosta, tudo corria com normalidade até que, após um relâmpago que alumiou tudo em volta e um trovão forte e prolongado, o gado começou a enlear-se, o cão impacientou-se e fixou o olhar, no caminho, uns metros mais adiante.
O marchante lembrava, mais tarde, que, também ele, ficara sem pinga de sangue, sem saber porquê, até que viu dois lobos, especados, no caminho, de olhos muito luzidios e ar de poucos amigos. Segurou a corda das reses, amarrou-a a umas moitas e gritou para o “herodes”: a eles, amigo!...
Nessa altura já cão e lobos se tinham envolvido em ataques e defesas. Juntou-se à “festa”, de garrucha no ar, aos gritos, e distribuiu bordoadas, tentando amedrontar as feras. O “herodes” agia com mestrança e cada dentada que dava fazia moça nos inimigos, até que, sentindo entre os dentes o pescoço de um dos lobos, não mais abriu a boca. Sacudiu, com quanta força pôde, enquanto o dono afugentava a outra fera. Em poucos minutos, estava ganha mais uma batalha do “herodes” – um morto e um fugitivo.
O “Tó” falando para o “amigo”, de tu para tu, como ele dizia, passou-lhe a mão pela cabeça, felicitando-o pela vitória. No dia seguinte eram bem visíveis as marcas que os bicos da coleira do “herodes” tinham feito nas fauces da fera morta – um corpulento lobo macho, provavelmente parceiro da fêmea, que fugira –.
Com o lobo às costas e as reses à corda, desceu até à ribeira. Pelas poldras, quase cobertas de água, passou um animal de cada vez. O “herodes” não precisou de ajuda; foi o primeiro a fazer-se à corrente e esperou pelo dono, no outro lado, lambendo as feridas, sentado sobre as patas traseiras, ao lado do lobo morto.
Molhado até aos ossos, o homem, olhou para trás e viu as poldras já todas cobertas de água. Amarrou, de novo, as reses, pegou na fera morta e uns minutos depois entrava no pátio de casa.
Gritou à Amélia e filhos para que trouxessem um candeeiro e, ali, diante de todos, estupefactos, apontou para o lobo que jazia no chão. Queria que fossem os primeiros a contemplar mais um troféu do “herodes” que se batera como um autêntico herói e, entretanto, já se tinha dirigido à casota, onde roera qualquer coisa e se ajeitara depois das voltas, do costume.
Chamado, saiu, ainda que contrafeito. Todos ficaram admirados e trataram, o melhor que puderam, as feridas deixadas pelos lobos.
Espalhou-se a notícia e, no dia seguinte, a fera foi exposta, pendurada no velho plátano do largo da igreja. Tinha bem o tamanho de um homem e faltavam-lhe dois dentes, tirados para a coleira do “herodes”.
Anos mais tarde, o “herodes”, já coxo duma pata traseira, cujo presunto servira de repasto a um outro lobo, morreu atropelado. Deixou no seu activo a morte de nove lobos, para além dos estragos que não chegaram a ser conhecidos, resultado de escaramuças de que trazia sinais para casa.
Ainda hoje, nas aldeias da região “herodes” é nome de respeito, para pastores e até, segundo crença destes, para os próprios lobos.