domingo, 27 de julho de 2008

Abílio – “vai-de-viagem”

Muitos, de gerações mais novas, nem lhe conheciam o verdadeiro nome – Abílio –, que recebeu na Pia Baptismal, quando, já andando e correndo tudo, pelo seu pé, o foram sacramentar ao Penhascoso.

De família mal remediada, vivia nuns casebres lá para o fundo do povo. Muitos dias da sua meninice foram passados nas duas hortitas da família, ou no quintal ao pé da porta.

Guardava duas ovelhas e quatro cabras e alimentava-se do que apanhava.

Na altura da escola, fez o que se lhe exigiu – o exame da quarta classe – e mais longe não foi. Dois anos depois já seguia para a ceifa, lá para o Alentejo, na companha do ti Chico “Manajeiro”.

O Abílio comia que nem um desalmado e era de muito boa boca, no dizer do manajeiro; tinha uns apartes engraçados e não faltava ao respeito a quem quer que fosse. Numa palavra: gostava do rapazote.

Numa tarde de imenso calor, veio o manteeiro com os quatro barranhões de gaspacho, os barris da água e um cesto com os corchos e os casqueiros partidos aos quartos. Dispôs tudo debaixo duma azinheira e fez sinal ao manajeiro que tudo estava pronto. Ouviu-se, pouco depois, a voz de “alto para jantar”.

Cada um tomou o seu lugar, pegou na colher e, após uma breve oração, foi dada a voz de comer. Todos se fizeram à “bóia”, com sofreguidão, e foram comendo.

A certa altura caiu um gafanhoto, de tamanho médio, no barranhão, frente ao Abílio. Não se incomodou o rapazote e, metendo o visitante inesperado na colher, como que num ritual, disse, com voz grave e baixa:

“Encolhe as asas que vais-de-viagem” e comeu o pitéu, com toda a naturalidade.

A coisa terá passado despercebida a alguns camaradas; porém, o Flores, mais judeu que os da Galileia, começou a andar de olho no Abílio.

Não foi preciso esperar muito tempo para que uma mosca caísse ao alcance do Abílio e tivesse o mesmo destino do gafanhoto, em ritual semelhante.

Tanto bastou para que o Flores e o Alberto espalhassem, imediatamente, a alcunha do “vai-de-viagem”.

Ao Abílio nada incomodava a alcunha, que nem sequer detestava. Sempre continuou a fazer-lhe jus: pernas de rã, verdugos, ouriços-cacheiros, raposas, corvos e andorinhas, eram, para ele, pitéus.