segunda-feira, 12 de novembro de 2018

sábado, 31 de março de 2018

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Acção política e apolítica

Já decidi e mantenho a convicção de que não vou escrever, expressamente, sobre “políticos” vivos, ou na vida política activa.

É tão grande a heterogeneidade dos agentes da nossa política que se torna difícil encontrar padrões classificativos para eles; e há tanta transversalidade nos princípios político-ideológicos vigentes que se torna pouco atractivo tratar esta ou aquela personalidade política.

Vão longe os partidos ortodoxos que se pautavam dentro de uma ideologia rígida e definida e visavam, como é lógico e natural, a luta pelo poder e a difusão dos ideais doutrinários, ao maior número possível de simpatizantes e possíveis militantes.

Havia líderes naturais e também quadros arregimentados; havia gente, talvez apenas políticos quanto bastasse, mas tecnicamente apetrechados para as mais altas incumbências da governação. Mesmo os partidos com diminutas possibilidades de chegarem ao governo, preparavam os parlamentares e os seus líderes para o debate vivo, acalorado e, geralmente bem fundamentado.

As oposições, combativas e construtivas, doutrinavam, como é evidente, os líderes do mundo operário, as supra-organizações dos trabalhadores, os movimentos estudantis, as juventudes, etc., mas não se limitavam às cassetes que hoje maçam, porque não referem nada de concreto, sustentável e inteligível, à grande maioria dos portugueses, acabando por produzir efeitos contrários aos visados.

A educação, as carreiras académicas que lhes abriram e o contexto que lhes foi dado para viver, empurraram as últimas “juventudes” para a “carreira política”, dadas as evidentes vantagens aí encontradas, relativamente às possibilidades no mundo do trabalho. Não seria honesto, considerarmos desonesto aquilo que muitos jovens fizeram, enquanto cresceram e o que fazem, enquanto consequência e corolário do que fazem.

Os direitos, que são atribuídos aos trabalhadores, são definidos pelas cúpulas, as acções são dirigidas por quadros, que pouca interacção têm com os que representam, ou pelo menos, dizem representar.

Como seria natural, este estado de coisas levou a muitos erros, à participação de muita gente que talvez não tenha tido outra utilidade para além do voto nas urnas, em dias de eleições. Levou à nomeação de gente carreirista e impreparada para as funções em que foi investida; não basta ser-se fiel ao dirigentes do partido e leal aos controladores, é condição “sine qua non” ser-se competente, trabalhador, honesto e experiente para liderar equipas que, pela sua essência e finalidade, têm sempre de perseguir a excelência. Temos o direito de ser governados pelos mais capazes.

Será que os ministros que nos têm governado passariam num teste apertado de liderança? E os parlamentares, resistiriam a um crivo apertado de competência técnica e idoneidade moral para representarem o povo, como tanto apregoam? Estão estes nossos representantes satisfeitos com o afastamento, cada vez mais evidente e perigoso, dos portugueses que representam?

Fazem-se análises para tudo. Será possível saber-se quanto tempo gastou cada parlamentar a falar do futuro e de como irá ser a governação a curto, médio e longo prazo? Ou, a oposição, a dizer como faria, com que meios, garantidos com que impostos, aquilo que o governo fez mal?



Mas, tudo isto em linguagem simples, clara e inteligível; tratados de centos de folhas, ou sites informáticos, NÂO! Quando os portugueses ouvirem factos concretos e explicações claras, dos seus representantes no governo e na oposição, saberão escolhê-los.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

As moedas dos franceses


As moedas dos franceses
Sentado, na horta de cima, nos Brejos, à sombra do limoeiro, junto da latada onde a videira dos cachos da tinta se embarrava por uma armação de barrotes, entre dois restos de troncos de velhas oliveiras, o tempo ia passando, sem eu dar por isso.

Corriam os dias de amena Primavera e era tempo de férias de Páscoa. Quinze dias sem aulas e apenas algumas obrigações de leitura, davam para fazer aquilo que tanto gostava: nada mais que pensar, dar largas à imaginação, ficcionar para lá da Lomba e da Ladeira do Brejo – limites do horizonte visual do local onde me encontrava. E naquele dia, cortando um céu límpido, levantava-se uma mancha mais escura, lá no sul, que o meu pai dizia ser o fumo das chaminés de Alferrarede.

Foi nesses tempos de verdadeiro lazer e despreocupada vivência que refinei gostos que jamais perdi: saborear a água da mina, ouvir os trinados dos diversos pássaros e sentir a aragem fresca e revitalizante, que soprava de noroeste, trazendo o ruido dos motores dos carros que subiam na estrada, lá na Lameira.

Andava a ler A Um Deus Desconhecido, de John Steinbeck. Sem ser um dos livros mais consagrados do autor, fora escrito no mesmo ano (1939) de umas das suas obras-primas As Vinhas da Ira, que juntamente com A Leste do Paraíso e outras obras levariam o autor à distinção com o Prémio Nobel de Literatura, em 1962 – ano em que se situa esta “história de gente simples” aqui relatada. Era pois, ao tempo, um dos autores da moda, que eu lia com avidez e satisfação.

Mas, naquele dia, aí por volta do meio-dia, o meu avô subia lá de baixo, da ribeira, onde regara, desde manhã, o batatal na horta do lado dos Brejos, com a represada do açude da Pleiça. Quase sem eu dar por ele, chegava-se, ali ao pé de mim, e, depois de breves momentos de contemplação para que eu levantasse os olhos do livro, deu a salvação e sentou-se a meu lado, aproveitando a sombra da latada.

As coisas estão-te a correr bem, lá pelo Mação e, segundo a conversa do teu pai, vamos ter cá na terra o primeiro professor e, com muita honra para mim, serás o primeiro a completar um curso, nesta aldeia. Ficará cumprida uma parte do meu sonho, embora me conste que os teus irmãos terão mais nalguma dificuldade que tu tens tido. 

Mas, se Deus quiser, também hão-de ter uma caneta mais leve que a minha – e mostra, com sinais de humidade nos olhos e alguma perturbação na voz, o cabo da enxada que trazia às costas-. Não é de minha inteira vontade que não venhas a ser doutor de leis, ou doutor médico, mas concordo com a vossa decisão, pois não somos ricos e parece que os teus irmãos vão precisar de outras ajudas.

Obrigado avô, é com esse bom senso que aprendi convosco – com o avô e com o meu pai – que decidimos traçar assim o caminho. Vou tirar o curso de professor, mas não vou parar. Gosto de estudar e continuarei a fazê-lo. Mas, ser doutor não será a minha primeira prioridade: organizar a minha vida da melhor maneira possível, seguindo algumas vidas onde se pode ganhar bem. 

Além disso ainda tenho de ir à tropa e agora a primeira coisa será atrasar essa ida o mais que puder. Para isso não posso interromper os estudos, mas daqui a dois anos não precisarei mais da vossa ajuda, deixando mais disponibilidades para a ajuda aos meus irmãos.

Essa foi a única razão porque aceitei que não sigas para a doutor. Mas compreendo e talvez ainda te veja lá chegar. Apego-me aos santos da minha devoção.

Veio, depois, aquilo que mais apreciava no meu avô e no meu pai – em muitas coisas tinham uma sintonia perfeita e nunca os ouvi alterarem a voz um para o outro -. Parecia que já tinham falado horas sobre coisas que ouviam pela primeira vez e tinham que decidir no momento. Penso que terei aprendido com eles a tomar decisões e rapidamente. 

Muitas vezes os revi, por trás de mim, quando tive que dizer sim, ou não. Um e outro, analfabetos, mas grandes mestres…

Este chão, onde estamos sentados, acabava, para lá do limoeiro. Um dia subia com o teu pai da horta de baixo, por um esconso de lousinhas que estava aqui neste lugar e parámos os dois, debaixo daquela oliveirita. 

Olhámos um para o outro e eu disse-lhe, apontando para a levada do chão de baixo: Continua-se a parede, de além até aqui, puxa-se o entulho de cima para baixo, até ficar tudo nivelado e depois, com terra das oliveiras, ali de fora da horta, enche-se até ao cimo. E está duplicado este chão de cima, onde plantaremos um limoeiro e, em riba da parede, aquelas videiras que dão os cachos da tinta, de que me tens falado. Fala a dois homens e os quatro acabaremos isto em menos de um mês.

O teu pai lembrou-me que era altura de comprar a da Ti’Estefânia, do lado de lá da nossa, pois a pedra para a parede estava lá a oferecer-se e chegara a altura de precisar dela. Tens razão, trata disso e se nós já oferecemos catorze e ela quer dezoito contos de réis, racha isso ao meio e fazemos isso.

Nós dávamos muito certo e fiquei à espera do resultado do negócio. Uns dois dias depois, no fim da ceia, o teu pai disse:

Acabamos de fazer negócio com a comadre Estefânia; ficou pelos quinze mil e podemos tomar posse quando quisermos. Penso que quando arrancarmos a pedra para o chão de cá, podemos deixar logo a que vamos precisar para ajeitar as duas hortas da que acabamos de comprar.

Vou agora dizer-te uma coisa que não deve envaidecer-te, mas deves recordar sempre: tenho reparado que és muito curioso e, certamente lembras-te do que acabei de te contar – terias aí oito, ou nove anos. Quando falávamos em negócios, ou combinávamos qualquer coisa, eras, todo, olhos e ouvidos. Eras perguntador e muito interessado e isso é muito bom. Sabes, é que me convenci que não te podíamos ensinar tudo o que precisavas de aprender e o teu caminho não era cá na terra, mas onde havia outras escolas – e contra tudo e a opinião de quase todos, decidi que os meus netos haviam de ser mais que eu e o teu pai fomos. 

Mas nunca te esqueças que o teu pai é um homem inteligente e esperto. Além disso muito honrado e equilibrado; foi por isso que lhe entreguei tudo e não estou arrependido. Nunca te esqueças que há coisas que agora aprendes com ele que te ajudarão toda a tua vida.

Mais uma coisa, antes de irmos jantar. 

Ali ao lado da horta de fora – essa parte, daqui para a saída foi herdada do Tio do Melhim. Já não o conheceste, mas era um velhote simpático – passava os dias atrás de um burrito, entre a casa onde morava e esta hortita aqui. A coisa melhor que cá tinha era a figueira regal – uma das melhores destas redondezas. Ainda estão ali os restos dela; não mais que uma pequena amostra. As videiras por riba da parede, aquela oliveira e o pessegueirito, aqui ao cimo, já foram todos plantados pelo teu pai e por mim.

Mas há uma coisa que talvez não saibas. Ao lado do caminho, pela parte de fora da horta, há uma cova, que é o que resta duma pequena represita, onde chegou a nascer água, mas acabou por secar. Mas toda esta zona, daqui até ao caminho para a Lameira, foi um souto, depois plantado com oliveiras; ainda há poucos anos se viam por aí umas cepas velhas com pequenas varas de castanheiro. 

Ali onde está a cova que eu disse ter sido uma represa, estava o maior castanheiro das redondezas – comia da horta e fora dela e, quem sabe, traria as raízes lá pelas águas que mais tarde apareceram na represa quando foi alargada a cova do castanheiro.

O Ti’Marques, assim se chamava o tio do Melhim, fartou-se de esgravatar lá no buraco que viria a dar lugar à represa, que chegou a ser um pequeno poço. Mas não procurava água. Procurava outra coisa mais valiosa, que acabou por nunca encontrar, porque ela não devia lá estar. No caminho até a casa, vou-te contar:

Quando os franceses, que invadiram Portugal, por cá passaram, roubaram muitas casas e sobretudo igrejas, de onde levaram muitas moedas de ouro – normalmente libras -. Para evitar as pilhagens, as casas mais abastadas guardavam os bens mais valiosos fora das casas, enterrados nas propriedades deles ou de outras pessoas. 

Cá na terra não havia grandes fortunas, mas houve muitas coisas enterradas; eu ainda enterrei, lá na tapada, uma pequena panela com dois cordões, uns pares de brincos e uns anéis, mais uns broches e umas correntes de ouro; as pessoas ficavam só com pequenas coisas e se fossem interrogadas, ou assaltadas, diziam que um soldado francês lhes tinha roubado tudo.

Havia também, entre os franceses, baús enterrados para que, se fossem assaltados, ou tivessem que mudar de acampamento por qualquer sobressalto, deixassem os resultados das pilhagens guardados. Dizia-se que à volta daquele castanheiro tinha sido montada a tenda principal dos franceses e foi lá, por baixo das raízes da árvore, que esconderam uma caixa cheia de moedas valiosas que quando foram obrigados a fugir, pelas tropas de Abrantes, não tiveram tempo de desenterrar.

Durante anos foram vários os que, durante o dia, ou a coberto da escuridão, ali gastaram horas a escavar. O ti’Marques foi um deles, pois era o dono do local. Apesar disso não constou nunca que tivesse encontrado nada; nem nunca se lhe viu nada de anormal. 

Histórias que vão passando de boca em boca e, umas com mais verdade, outras com mais fantasia, acabam por virar lendas.


Esta é uma das muitas recordações que guardo do meu avô. Faleceu, serenamente, aos oitenta e muitos anos de idade, no dia do meu casamento. 

Que descanse em paz, como merecem os homens bons e justos.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

3 Expressões… 3 Homens…



A quarta personagem não é pintor… nem se trata de uma pintura sobre tela, à boa maneira dos clássicos; antes uma mera fotografia, de feliz conjuntura.

…Na Biblioteca da Universidade Católica de Lisboa, de que o Comendador Sebastião Alves era mecenas, onde iria ser distinguido com o grau de Doutor Honoris Causa, em reconhecimento pelo seu labor de décadas, em prol do desenvolvimento do País, nas áreas industriais e culturais, nomeadamente nos sectores Farmacêutico, Editorial e de Transformação de madeiras.

De Lisboa (Benfica) e da Vala do Carregado para grande parte dos países do Mundo, seguiram milhares de milhões de unidades de produtos farmacêuticos, exportados após produção pelos Laboratórios Atral-Cipan.

Da Editorial Verbo, através do seu braço comercial Crediverbo, seguiram para os lares deste País, muitos milhares de livros, até então inéditos em Portugal.

E das matas do Centro milhares de toneladas de madeiras de pinheiros e eucaliptos foram trabalhadas nas fábricas de aglomerados de Proença-a-Nova e de celulose de Vila Velha de Ródão.

Muitos equipamentos didácticos (aparelhos para o ensino da Física, Química, Ciências Naturais, História, Geografia, etc.) foram distribuídos pela Tecnodidáctica a que o Comendador sempre deu carinho especial.

Deste Senhor Sebastião Alves com quem tive a honra de trabalhar durante décadas e de por ele ter sido conduzido ao cimo da hierarquia empresarial, pouco mais direi.

Porém, com a reserva que me impede de correr qualquer indiscrição sobre os temas das muitas horas de conversas para que me convocou, direi que era possuidor de uma inteligência brilhante, de uma rapidez de raciocínio ímpar, de uma cultura geral enorme e de conhecimentos na área da Química, Bioquímica e Afins, ao nível de Catedrático.

Escrevia bem e era leitor compulsivo – receio que se tenham tresmalhado muitas coisas que escreveu…

O Senhor Padre Sousa, era, ao tempo, vigário da igreja Matriz de Mação (meu concelho), ido de Proença-a-Nova, e onde teve ligações com o Comendador Sebastião Alves (natural de uma pequena aldeia próxima da vila).

Foi convidado, junto com a terceira personagem, dr. José Carlos Gueifão, director-adjunto do Jornal Voz da Minha Terra, de Mação, de que, como vigário e consequente inerência, o Sr. Padre Sousa era Director.

Completas as identificações dos 3 Homens, restam as explicações quanto às expressões.

Sem dúvida, personalidades difíceis e alguma expectativa quanto aos interlocutores. 

O que melhor se sentiria, porque conhecia os restantes era o Senhor Padre Sousa; já que o Comendador e o dr. José Carlos não se conheciam; nem ficaram a conhecer-se, seguramente. 

Mas, não há sinais visíveis de desconforto provocados pelo encontro.

Quando tive oportunidade de explicar ao senhor Comendador que o dr. José Carlos foi bancário e fazia parte do grupo dos que, sem ajudas e apenas pela sua própria força, atingiu lugar de topo na hierarquia do Banco, onde trabalhou, apenas acrescentou duas palavras: gostei dele.


Quanto a mim, reservo-me a honra pelo testemunho do evento e a pintura do quadro.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Era uma vez.... Um NATAL na aldeia.


BOAS FESTAS PARA TODOS
...sem excepção.


Nos meados do séc. XX, começou a debandada das terras do interior para a cidade de Lisboa – normalmente o homem, ou homens da casa deixavam as mulheres a tratar as terras e a cuidar dos filhos e procuravam, na capital, um trabalho na construção civil ou um emprego na Carris, nos Telefones, nas Polícias ou nos Ministérios. 

Tudo dependia dos conhecimentos.

Nas tardes de domingo, quando não se faziam umas horas extraordinárias, juntavam-se aos magotes nas praças e jardins de Lisboa e arredores, grupos de trabalhadores de cada região. 

Depois da missa e do almoço convergiam em grupos para junto dos conhecidos, para saber notícias da Terra, para procurarem novos trabalhos, para conviver e até, muitas vezes, para vestir roupa lavada e fazer uma ou outra extravagância, no café e na taberna.

O Ti’Alberto Carpinteiro, trabalhava, como mestre de cofragens, nas obras dos prédios que, como cogumelos, cresciam, às dúzias, no meio das oliveiras do local onde viria a ser o futuro Bairro dos Olivais. 

Pernoitava na barraca da obra, onde, junto com os colegas, faziam as refeições. 

Aos domingos à tarde, saía em grupo, a corta mato, por Chelas e Areeiro até ao Campo Pequeno, para onde puxava a rapaziada da Carregueira, Aboboreira e Alcaravela. 

Estes grupos passaram, mais tarde, a organizar excursões que saíam de Lisboa, depois do trabalho de sábado e regressavam na noite de domingo. 

Dava para ir levar a roupa suja, trazer alguma coisa para comer e ver mulher e filhos.

O Ti’Alberto, carpinteiro de apelido e de profissão, não era homem de grandes jogatanas nem sociedades de copos. 

Andava por ali, vendo montras, tirando ideias e pensando na vida. 

Não puxava para grandes falas, mas não queria andar por fora das novidades e umas vezes ficava lá pelo Campo Pequeno, outras ia até ao Terreiro do Trigo, ao Jardim da Parada, ao Príncipe Real, ao Rossio, etc. 

Tinha muitos conhecimentos na arte e não eram raros os pedidos que recebia dos que procuravam trabalho, porque queriam mudar, porque tinham sido dispensados, ou porque acabavam de chegar da Terra.

Um domingo de Novembro, depois de estar a ver uma partida de sueca, numa mesa do Jardim da Parada, resolveu dar uma vota pelas redondezas para aquecer os pés e ver as montras. 

Em frente duma loja, pensou, de repente, em levar ao neto, uma coisa que nunca tinha tido: um brinquedo para pôr no sapato do Joãozito, na noite de Natal. 

Havia ali de tudo: bonecos articulados, piões, coisas para fazer barulho, camionetas de carga, de bombeiros, etc.. 

Andavam pelos dez escudos…

Mas havia coisas muito bonitas e bem-feitas!..

Terá ficado ali a mirar a montra, mais de meia hora. 

Até que um colega se chegou a ele e perguntou: o amigo está a sentir-se bem? 

É que está aqui há tanto tempo, que já estávamos em cuidados!...

Nada, nada!... 

São cá coisas minhas. Nunca tive brinquedos assim e lembrei-me que o meu netito, havia de gostar de ter uma camioneta daquelas… mas a loja está fechada e durante a semana não posso vir cá buscá-la…além de que nove mil réis é quase meio dia de trabalho!..

Ora, ora, Ti’Alberto, o dinheiro é para se gastar. Vir cá buscá-la é que custa quase outro tanto. 

Mas, sempre se ouviu dizer que o mestre é um grande artista na madeira… 

Com uma perna às costas, tire aí uns desenhos e faça uma coisa melhor que a que estamos a ver. 

Até o seu neto irá gostar mais, se souber que o avô é que fez a camioneta de madeira. Pense nisso!...

Já nessa noite o Ti’Alberto teve dificuldade em adormecer. 

Madeira arranjava com facilidade. Ferramenta e tudo o resto, também. Habilidade, não havia nada como tentar e nas três semanas seguintes juntou tudo o que precisava, serrou, limou, lixou, furou e quando tinha tudo pronto pediu ajuda a um pintor e os dois acabaram a pintura e montagem da camioneta. 

Tinha marca, matrícula, volante e até uns pneus de borracha. Uma verdadeira obra-prima, disseram todos os que a viram. 

Até diziam que, se quisesse, podia ganhar dinheiro a fazer coisas daquelas, pois eram muito melhores que as das fábricas. 

Media a camioneta 40cm de comprimento pelo que não havia, lá pela obra, uma caixa para meter a peça. 

Até que um vendedor de ladrilhos lhe trouxe uma caixa de cartão, sem quaisquer nomes nem desenhos, para guardar o brinquedo. 

O último trabalho foi, pois, pintar e embrulhar a caixa. 

Mas, antes de fechar o embrulho, lembrou-se de dois pequenos chocolates que lhe tinham saído numa rifa e que ele guardava, ciosamente, para dar ao neto, como prenda de Natal. 

Embrulhou, cuidadosamente, os doces e colou-os na caixa de carga da camioneta. 

Era o primeiro transporte que ela fazia….

Nas últimas semanas antes do Natal, na viagem à Terra, conversou muito com o neto, levando a conversa para brinquedos, para camionetas, carrinhos…para ver quais as reacções do pequenito, ao tempo nos seus nove anitos. 

Soube que era muito bom aluno, lá na escola, que tinha escrito uma carta ao Menino Jesus a pedir que lembrasse o Pai Natal que não se esquecesse dele… 

Então e o que pediste de prenda, João?

O Ti’Alberto ficou atónito quando o neto lhe disse: uma camioneta grande, para poder levar e trazer mercadorias e poder ganhar dinheiro suficiente para o avô e o meu pai não precisarem de sair da Terra. 

Mas devem ser tantos os meninos a pedir assim coisas importantes que, certamente, como nos outros anos, só vou receber algumas meias, ou alguma coisa que precise para a escola. 

Ouvi dizer que uma camioneta como eu gostava custa muito dinheiro e também pensei se depois não era preciso tirar a carta antes de poder trabalhar com ela. 

Logo se vê, avô, mas olhe, se não for, paciência…

Dali em diante não sabia o Ti’Alberto qual dos “meninos” andava mais ansioso pela chegada do Natal: se o neto, se o avô!... 

Tinha dificuldade em adormecer, imaginava como devia ser a cena da chegada do embrulho ao sapato do neto, como havia de disfarçar os chocolates, se devia ou não pôr alguma marca, etc…Ah! e uma buzina como a das bicicletas!...

Até que chegou o dia da consoada e quando chegou a camioneta da excursão com os homens de Lisboa, um dos que os aguardavam era, nem mais nem menos que o João Carpinteiro. 

Agarrou-se ao avô e mirou-o, de alto a baixo, estranhando um saco, maior que o normal, que o avô trazia às costas. 

E dirigiam-se para casa, quando o Ti’Alberto disse: João, ali o Ti’Manel do Ribeiro tem estado doente e não pôde vir. Pediu-me que lhe trouxesse aqui umas coisas para a Tia Amélia. Vai andando para casa que eu vou por lá deixar o recado e já te apanho em casa. 

E separaram-se.

O Ti’Alberto foi a um palheiro esconder a encomenda e depois dirigiu-se para casa. 

Como quando chegou o volume do saco era mais pequeno e a mulher lhe perguntou se o compadre Manel estava melhor, tudo passou despercebido e ainda que agora mais ansioso que o próprio neto, foi até à taberna e depois de conversas de ocasião, meteu a mão ao bolso e vendo as horas, despediu-se, pois ainda tinha umas coisas que ultimar, porque no dia seguinte era dia de consoada. 

Estava inquieto…

Foi, por cima do telhado, até à chaminé. Tirou o novelo de guita do bolso e atou-lhe uma pedra na ponta. Meteu o cordel por uma das aberturas e deixou cair até chegar à lareira. Fixou o cordel pelo lado de fora da chaminé e entrou em casa, dirigindo-se à lareira. 

Escondeu a ponta do cordel dentro da chaminé, por cima das varas dos enchidos e pronto, não se falou mais no assunto. 

Cearam, fizeram-se as filhós, e foram todos para a cama.

Nessa noite o Ti’Alberto não se conteve e, como se fosse ele que estivesse para receber um presente muito desejado que nunca tinha tido, contou à mulher todo o enredo da prenda que preparara para o Joãozito e do que tinha planeado para o dia seguinte:

Depois da ceia o João ia buscar uma das suas botas e punha-a, na lareira para que o Pai Natal, mandado pelo Menino Jesus, viesse trazer-lhe alguma prenda e ia para a cama. 

Algum tempo depois ele prendia a caixa que tinha no palheiro à ponta da guita e içava-a para dentro da chaminé de modo que não se visse de dentro da cozinha. 

Nessa altura a avó ia chamar o João, dizendo que estava à lareira mais o avô e ouviram uma restolhada na chaminé, pelo que o avô foi lá fora ver o que se passava. 

E ela também tinha ouvido qualquer coisa dentro da chaminé, pelo que deviam ir ver o que se passava.

A cena seguinte é indescritível: 

A caixa de cartão, descendo lentamente na direcção da bota e finalmente pousando sobre ela, depois o fio caindo e finalmente ouviu-se a voz do avô, gritando:

Ouça, senhor Pai Natal, venha cá, não fuja que não lhe quero fazer mal. Só queria que o meu neto lhe agradecesse e que dê um grande abraço ao Menino Jesus que o mandou. 

Adeus, até para o ano!….

E, ainda o João não tinha tido coragem para começar a abrir a caixa de cartão, já o avô chegava para contar o que se tinha passado. 

Mas, atalhou o neto: foram as nossas conversas avô. 

Eu comecei a acreditar que era possível e fiz muita força. E conseguimos avô!...

E abraçou-se aos avós e aos pais, entretanto também chegados, pois ouviram o avô aos gritos em cima do telhado e vieram ver o que se passava.

Patético!... 

O João não sabia por que ponta havia de começar. Quando abriu a caixa e viu a camioneta, nem queria tocar-lhe…iria sujá-la!... 

Seria verdadeira? Estava acordado? Seria aquilo um sonho? 

Depois deitou-se no chão da cozinha, olhou a camioneta de todos os ângulos, apalpou os pneus... verdadeiros! 

Torceu o volante…rodava!... 

Não, Não podia ser verdade… Até que adormeceu…

O Ti’Alberto apenas disse: 

Recebi, hoje, com mais de cinquenta anos , o melhor da minha vida!...

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O penedo das Taliscas


O penedo das Taliscas, ou penedo rachado, tinha fama de tudo e não tinha nada de concreto. 

Dominava o alto da Ladeira do Brejo e era formado por um aglomerado de grandes pedras que, se um dia tivessem sido objecto de estudo aprofundado, teriam, pela certa, sido sepultura de remotos antepassados.

E, com um pouco mais de boa vontade, ter-se-iam feito escavações para descobrir os fundamentos de um castro, encimando o vale exuberante e pródigo de verduras e águas potáveis… 

Mas o que era, de facto, era um covil de lobos e raposas, no tempo em que uns e outras habitaram a região. 

Depois, com as desarborizações, as queimas e o retirar de pedras, nem coelhos ou lebres por lá andariam. 

Coisas dos tempos!...

Uns cem metros abaixo do penedo, já perto da ribeira, passava a rodeira, diariamente seguida pelo moleiro, quando se dirigia para a azenha do Vale do Corisco e, em sentido oposto, quando, já sobre a manhã, com os taleigos cheios de farinha, em vez de grão, subia, de regresso ao povoado, até às casas dos fregueses.

Na azenha não se acabava a aguardente, na cabaça, que levava um pouco mais de litro e meio e era comprada como tal, na voz do taberneiro que deixava sempre uma boca, cada vez maior, segunda queixa do moleiro. 

Depois, de golo em golo, em menos de uma semana, ia-se a aguardente da cabaça e lá voltava o Ti’Manel a trazê-la, para fazer a recarga e voltar com ela para a azenha. 

Não raras vezes, o excesso de pinga, trazia ideias brilhantes ao cérebro do Ti’Manel. 

Iluminações essas que depois divulgava, na taberna, quando outras fontes, à base de vinho, espevitavam a criatividade e soltavam a língua do moleiro. 

A maior parte já nem ligava ao que ele ia contando.

Então, contava ele, que ainda há uns dias, aquilo, lá em riba, no penedo das Taliscas, foi o diabo: havia lume por todo o lado, berros e gritarias, pedras a rolar umas sobre as outras e, certamente, o Demónio que comandava toda aquela algazarra, largava pachouvadas pela boca fora, de fazer corar o menos santo dos ouvintes.

Até o macho, ajoujado sob a carga, parou, para presenciar aquelas cenas, enquanto o dono aproveitava uma barreirita do caminho, para se aliviar, lançando fora, uma espécie de revolta que lhe ia no estômago. 

De repente acalmou-se tudo e só já deu pelo carriço a comer qualquer coisa aos seus pés. 

Encolheu os ombros, deu uma cacheirada no macho e arrancou.

Aí, entrou o Ti’Diogo, que havia muitos anos, passava com regularidade na Terra, esmolando e chegando mesmo a dar umas jornas a quem lhe pedisse, antes de seguir o seu caminho para a aldeia seguinte. 

Atrás dum copo, atirou ao moleiro, com ar de desafio:

Mas olhe cá, oh! Ti’Manel, não teria bebido umas goladas a mais, para esvaziar a cabacita e trazê-la para encher? 

Não terá sido no dia da trovoada que esteve brava ali para os lados de Alcaravela e os relâmpagos, por trás do penedo, pareciam incendiar tudo?

Não terá mandado parar o macho, para se aliviar e lançar fora? 

E o carriço, com a barriga a dar horas, não terá aproveitado o que o dono deitou fora, para comer qualquer coisa? 

E, até podia esconder-se, lá no penedo alguma raposa, ou gato bravo que, no contra luar lançassem brilho dos olhos e lhe dessem, a vomeçê, visões?

Eh! Diabos!...

O Ti’Diogo é capaz de ter toda a razão, disse o moleiro!... 

Pensando bem, só vejo essas coisas nos dias em que me distraio e abuso da cabacita!... 

É capaz de estar certo, homem de Deus, mas olhe que nunca ninguém me tinha explicado essas coisas, com tanta clareza. 

E, fazia-me espécie por que raio o macho e o cão paravam sempre ali naquele sítio. 

Era, afinal, onde eu mandava, para fazermos um pequeno descanso e retomar forças para o resto do caminho.

Oh! Manel, deita lá mais uns copos, que o raio do homem bem os merece. 

Foi, até hoje, a única pessoa capaz de me abrir os olhos e explicar-me tudo. 

E, não se esqueça, Ti’Diogo, de passar lá pela azenha, quando andar por aquelas bandas. 

Poderemos subir lá a riba, ao penedo e, pela certa, junto a algum covil de coelhos, encontraremos as caganitas e pouco mais.

Apareça, homem!... 

Lá o espero!.....