sábado, 30 de agosto de 2014

O Sei-que-sei



Naquele verão, em todo o Carvalhal, não vingava couve, ou outro mimo, que se visse. 

Dos eucaliptos do Cortiço ao Chão de Burro, passando pelas bordas do Vale das Lebres, todo o Marco e Várzea da Bicha, até à Passada e Portela dos Carreiros, não havia horta que não fosse visitada por coelhos e lebres. 

A canícula, a falta de folhas tenras e a abundância de criação daquele ano, eram propícias à maior praga de que havia memória por aquelas bandas.

Os espantalhos, sebes e caniçadas; as armadilhas, esperas e ferros; bem como a guarda nocturna nas barracas de colmo que davam à charneca um ar de acampamento primitivo, serviam apenas para afugentar ou dizimar uma pequeníssima parte da praga devoradora.

Junto à nossa vinha, que ocupava uma courela, desde o talvegue ressequido do que no Inverno era um ribeiro, até ao pinhal do Vale das Lebres, estendia-se, pelo meio-dia, a vinha e horta do ti’Adriano Pereira, da Queixoperra. 

Entre as videiras e o pousio da seara, uma tira de horta, em que verdejavam: o feijão verde, as nabiças, couves de repolho e sete semanas e dois regos de alfaces, cenouras e cheiros. 

Tudo regado, dia-sim-dia-não, pela água de um poço de uns três a quatro metros, por meio de uma velha picota, que, por ser das poucas das redondezas, servia de pouso a corvos, gralhas e outra passarada.

O Jerónimo, filho mais velho do tio Adriano, andaria, ao tempo, na casa dos quarenta anos e era apoucado, principalmente quando lhe convinha. 

Tinha, todavia, hábitos e costumes estranhos ao comum dos mortais: nunca apertava os atacadores das botas, o estado normal era bêbedo, nunca se calava e proferia todo o tipo de impropérios contra tudo e contra todos. 

Não faltava a feiras e mercados, especialmente de Mação, onde o alvo predilecto das suas investidas eram os elementos da Guarda Nacional Republicana, que normalmente o arrecadavam umas horas, libertando-o com o sol ainda alto, com a bebedeira quase curtida e quando ainda tinha tempo para chegar, com dia, ao Carvalhal, à barraca da horta, onde pernoitava a maior parte dos dias. 

Saía do posto da GNR e atravessava a vila até à taberna do Perdiz, ou à do ti’ Alexandre, onde, de companhia com o sobejamente conhecido Cabo Emídio, voltava a enfeitar-se, acabando por tomar a estrada até ao Coadouro, meter pelo atalho que deixava à esquerda Penhascoso, até ao tanque do Clarinha e, depois de descer a ladeira do Cortiço, seguia pelo caminhito do ti’ Lameira até ao seu destino – a barraca de colmo, na horta do Carvalhal –.

Durante todo o tempo não se calava, repetindo a cada quatro ou cinco palavras a expressão ´´eu-sei-que-sei``, quer tivesse alguém a ouvi-lo, quer falasse sozinho, estivesse no centro da praça de Mação, caminhando na estrada, ou na horta do Carvalhal. 

Enquanto durasse a influência da pinga nunca se lhe acabavam as histórias, nem se esgotavam os alvos das suas críticas. 

Gastava horas em solilóquio, no silêncio da noite, na barraca de colmo, investindo contra tudo e todos, repetindo sempre o mote: ´´eu-sei-que-sei``.

Num desses monólogos, criticava tudo e todos, insurgia-se contra a nova moda das batidas às raposas, de que tanto se orgulhavam os caçadores da sua aldeia. 

Dizia que já tinham o que mereciam, uma praga de lebres, coelhos e outros animais que acabavam por derreter tudo o que havia nas hortas. 

Acabava, invariavelmente, acariciando a espingarda e dizendo que aquela nunca daria um tiro em batidas.

A mãe Natureza é sábia e anda muito bem regulada: os grandes comem os mais pequenos, que por sua vez se alimentam de outros menores; mas também esses grandes encontram outros maiores. 

Sempre assim foi e há-de ser e quando o bicho homem se mete, só estraga!… só estraga!… e repetia, até à exaustão: só estraga!... só estraga!… só estraga!… 

Assim como a Guarda que leva a gente preso até a vila ficar vazia. 

Depois, não nos quer lá para nada e manda-nos embora… esquece-se que ainda estão abertas as tabernas. 

Não ganha nada e só arranja mais inimigos… como eu e o cabo que pagamos, o que não devemos e nunca havemos de ter as contas em dia com estes malandros que melhor faziam se fossem atrás dos ladrões e dos bandidos. 

Andam atrás de quem lhes diz as verdades?!... Não ganham nada.

A verdade é que na horta do ´´sei-que-sei`` não entravam as lebres nem os coelhos e eram bem apetitosos os mimos que lá verdejavam.

sábado, 23 de agosto de 2014

As bruxas


O Ti’António Lindo morava no “Casal”, ao canto do pequeno adro da capela, no andar de cima de uma casita, estreita e comprida, com uma varandita de pedra, de uns dois metros por um e guardas de um palmo de altura.

Nos baixos da casa, a loja albergava as galinhas, duas cabritas e uma ovelha, que a Ti’Carolina levava, todos os dias, até ao Casalinho. 

Ali, na melhor das poucas hortas da família, uma mina, razoavelmente fornecida de água, dava para regar diariamente e era, por isso, um oásis naquela encosta sul da serra.

Homem de muitas prosas e poucas obras, como dizia o meu avô, o Ti’António Lindo, descia pela pequena escada de pedra – uns quatro degraus – e ao fundo da rua, junto à casa do irmão Abílio, virava à direita para ficar em frente da porta de meu avô, onde se sentava no poial de pedra, coberto pela sombra, na hora da sesta.

Tinha percorrido, de casa até ali, uns sessenta metros. 

Encostado ao cajadito, que sempre o acompanhava e lhe servia de amparo, dava a salvação e sentava-se no poial, de onde emitia e captava as últimas novidades e bilhardices, à boa maneira das comadres. 

Eram as novidades da terra e arredores.

Numa dessas prosas, que eu muitas vezes espicaçava, contou-me o Ti’António Lindo a história das “bruxas do Lavadouro”, sítio junto à nossa horta do mesmo nome, situada na ribeira, no local onde o talvegue aperta e uma fiada de três poldras, bastante polidas e desgastadas pelos milhares de pés e patas que por ali passaram, fazem a ligação entre os dois lados da ribeira. 

Na maior parte do ano passa-se a pé enxuto, mas no inverno, tem de se ir dar a volta à ponte, uns cem metros, mais abaixo, a jusante.

Logo abaixo das poldras, dum e do outro lado, estendem-se as pedras da lavagem, na orla dos lameiros, onde as mulheres estendem a roupa a corar ao sol. 

Também ali, nas golas da corrente, se lavam as tripas dos porcos, em tempo de matanças.

Sobranceira às pedras da passagem, uma boiça, de silvas e tojos, ocupa um pequeno patamar, um metro acima do nível da água. 

Era ali, segundo as palavras do Ti’António Lindo, o local onde as “bruxas”passavam.

O “diabo” sentava-se do lado de lá das pedras de passagem, naquele altinho, onde agora só há mato e balças, e assistia à passagem das bruxas da Serra, que se dirigiam para Alcaravela; era ali que fazia a contagem e via a habilidade de cada uma, para ter a certeza que seriam capazes de percorrer, em cada noite, sete vilas acasteladas, e chegarem a tempo ao baile.

Como as pedras estão muito puídas e gastas e as bruxas têm pés de cabra, muitas escorregavam e aleijavam-se; o mafarrico, sentado no seu trono, sem elas o verem, é claro, fartava-se de rir e assistia à desistência das que tinham de voltar logo para trás. 

Se reparares bem, anda aí uma com uma anca meio desconjuntada e outra com uma perna partida!...

Depois da passagem, numa grande restolhada seguiam caminho fora. 

Nos cruzamentos dançavam em volta do diabo, que seguia na cambada, sem nunca se mostrar, nem ser visto pelas “bruxas”.

Percorridas as sete vilas acasteladas, tinham de se juntar, antes do bater da meia-noite, no terreiro do Chão da Guedelha, além nos altos do cabeço Barreiro, para o bailado final e a grande festa ao Diabo.

Dali desapareciam todas, como por encanto, e iam meter-se na cama, ao lado dos homens, que nem deviam chegar a dar pela falta delas. 

Só que um dia o João Verdugo, gozado na taberna por nem sequer dar pela falta da mulher e já com um grão na asa muito bem aviado, deu pela falta da mulher na cama. 

Pôs-se à coca e quando ela voltava de uma necessidade, pois estava com um desarranjo de barriga, desatou à bordoada e deu-lhe, de tal maneira, que a pobre foi parar ao endireita com umas costelas partidas e nódoas negras pelo corpo todo. 

No dia seguinte gabava-se da tareia que dera na coitada.

Quando, daí em diante, lhe falavam em bruxas, limitava-se a dizer que a dele estava curada e, tão depressa, não voltaria a sair.

A rematar, o Ti’António Lindo sorria e dizia-me: 

Não acredites nisto, ouviste!... 

São patranhas que a gente conta; respeitamo-las; mas não acreditamos nelas. 

Além de que são coisas de mulheres...

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O lenço a dizer adeus!…


Havia muito tempo que não assistia aos festejos anuais da minha aldeia. 

Ou porque a data coincidisse com compromissos sociais e obrigações familiares, ou porque outros eventos me desviassem, os anos foram-se passando e eu não ia às festas.

Até que neste ano da graça de 2014, se conjugaram as coisas e, com muita saudade e prazer fui rever as pessoas e lugares que constituíram o meu primeiro mundo e ainda ocupam um lugar cativo nas minhas memórias de infância.

Os anos passaram, os acontecimentos rolaram e, para além das Histórias de Gente Simples que vão conseguindo abafar o meu desejo de estar por perto daqueles caminhos, daquelas gentes e daqueles costumes, pouco vai ficando.

Porém, nestes dias, confirmei que as memórias antigas não se apagaram, e quando me acontecia perguntar por alguém que já deixou o mundo dos vivos, localizava os rostos e os traços que deixara de ver muitos anos atrás.

No recinto da Associação, onde foi preparado o altar e celebrada a missa, pude apreciar e admirar todas as pessoas, participando, à sua maneira e surpreendendo-me, até, com a evolução do seu ritmo natural e a evidência da sua fé.

Para uma Assembleia de Gente Simples, com um padrão etário elevado e permeável a análise e consciencialização, soube o celebrante da missa, senhor Padre Amândio, fazer uma homilia muito a propósito, exortando, cada um, ao cultivo da paz interior e ao bem-estar consigo próprio. 

Desse modo todos poderemos viver a vida como ela deve ser vivida; cada um deve ter a sua meta de felicidade e nunca abandonar esse objectivo, na certeza que depois do copo cheio ele não leva mais e aos olhos do Juiz Supremo, todos os copos cheios terão o mesmo valor, independentemente da sua capacidade. 

A “palavra” foi percebida e a Assembleia gostou…

A Organização dos festejos, da responsabilidade da Associação da Serra, mostrou, mais uma vez, um Homem que já cumpriu muitas etapas de vida, tem gasto muitos anos na luta, sem tréguas, visando a excelência, subiu, a pulso, todos os degraus que a vida lhe apresentou, nunca descansou sobre os louros e, acrescentaremos mesmo que até a morte soube vencer. 

Espero, desejo e exorto os meus conterrâneos a prestar-lhe a homenagem que acredito que não deseje, mas estou certo que todos lhe desejam prestar. 

Desafio os mais novos a reverem-se no exemplo de um Homem - o dr. Manuel Serras - que soube provar que Simplicidade nunca será sinónimo de Inferioridade.

Passei, várias vezes, os olhos pela Assembleia, lembrando uma afirmação de um velho amigo que já nos deixou e me dizia: senhor professor, permita-me que o trate como o seu avô José Lourinho gostava que se dissesse. 

É para lhe dizer que isto aqui acabará tudo por acabar: temos para aí viúvas às dúzias, homens com menos de meio cento de anos contam-se pelos dedos e crianças…nada.

Naquele preciso momento fixaram-se-me os olhos numa velhinha, curvada sob as décadas de duras labutas, mas, à boa maneira de outros tempos, com o lenço de merino escuro, atado na cabeça. 

Fomos à conversa e quando me disse que nunca mais esqueceria os tempos que estivera no Fundão, passou as mãos pelo lenço, levantou os olhos e disse que o homem se tinha ido de repente. 

Momentos depois voltou a falar da sua solidão – que Deus nunca lhes deu filhos – e, novamente as mãos a ajeitar o lenço. 

As palavras eram simples, às vezes embargadas, mas o brilho dos olhos e o toque no lenço…

…Um lenço a dizer adeus!...

Não continuámos. Ela pediu para me dar um beijo, de agradecimento por tudo o que fizera por eles, recomendando-os para a casa onde acabaram por ser tão felizes. 

Confesso que não esperava aquela reacção e, apanhado de surpresa, pedi para lhe tirar a foto que ilustra esta pequena História de Gente Simples.

Termino com uma palavra de muito carinho por todos os meus primos que, sabendo da minha presença, se deslocaram da Queixoperra e quiseram estar comigo e a minha mulher Irene. 

Obrigado a todos e Deus dê saúde e prosperidade à família Valente.