domingo, 23 de fevereiro de 2014

O burro dos ciganos


O Jaime nasceu no olival da Barca do Pego e, na companhia do clã, passava, na nossa aldeia, várias vezes por ano, ficando, quando calhava, algumas semanas, lá na Serra; uma das Terras onde melhor era recebido, segundo as suas palavras. 

Trazia a carroça com a garotada e a mulher e acomodava-se, no cabanal da rua da carreira, junto da atafona. 

Estava no centro do povo, aproveitava o espaço para ir tosquiando as bestas que apareciam, dava dois dedos de conversa a quem passava e tinha a taberna à mão de semear. 

Conhecia e era conhecido de toda a gente. Em pequeno ainda chegou a frequentar a escola local. Era como se fosse filho da terra e, dum modo geral, muito querido e estimado. 

Porém, nunca aceitou trabalhos no campo, fora das suas artes de tosquiador, ferrador, latoeiro e caldeireiro. 

Trazia, habitualmente, uns burritos e uma ou outra besta, presos atrás da carroça, para venda e troca. 

A mulher e os filhos angariavam, de porta em porta, o sustento da família e, segundo palavras do Jaime, a Serra era terra onde se recebia mais do que o que se comia. 

Outras havia em que até a água era dada de má vontade, a crer nas afirmações do cigano. Mas nessas nem apetecia poisar; fazia-se o serviço que havia, o mais rápido possível e … “ala moço, que se faz tarde”!... 

Uma ocasião, teve de entrar numa demanda. 

Foi acusado, no tribunal de Mação, pelo Ti’Chico Manco, de o ter enganado, vendendo-lhe uma besta velha e cansada, que nem dava para ir à horta, e, de cavalaria, nem com a albarda podia. 

Foram estas as queixas contra o sr. Jaime cigano, mais conhecido por Jaime Tarita, que a GNR teve dificuldade em notificar. 

Foram ouvidas várias testemunhas de defesa. Eis um dos depoimentos: 

É claro que a costela de cigano está lá – disse o Ti’Abílio, ao tempo Cabo de Ordens –. É finório nos negócios, mas nunca foi mais aldrabão que qualquer um de nós. Posso afiançar, ao Senhor Doutor Juiz, que o Jaime não enganou o Chico Manco – Francisco Alves Mendes, melhor dizendo –, pois, eu próprio presenciei o negócio, assim como muitos outros, lá na taberna da Serra. Vendeu-lhe uma besta por duas notas. Acha o Senhor Doutor Juiz que, por esse dinheiro, lhe podia dar um cavalo de corrida!?... Será que o aldrabão é o Jaime!? Atão o Chico não sabia que estava a comprar uma velha azémola? 

Interrogado, o Jaime apenas disse que a besta do negócio sempre esteve à vista de toda a gente e se tivesse que meter gato por lebre não seria na Serra. 

Era besta velha e de pouco préstimo, o melhor que se podia arranjar pelo preço. 

Acabei por ir em paz e com a caderneta limpinha como, orgulhosamente, se gabava o Jaime Tarita, quando lhe falavam no tribunal. 

Numa das passagens pela terra, o Jaime cruzou-se com uma trupe de ciganos, desconhecidos por ali, mas que o Jaime conhecia, de ginjeira. 

Passavam a vida a vender gado barato, não eram de confiança, parecia que tinham cola nos dedos e, pior ainda, eram como os espanhóis: tinham os olhos na ponta dos dedos. 

Estes foram os avisos feitos na taberna, destinados a precaver quem com eles quisesse fazer negócio, ou deles se aproximar. 

À saída da missa, no largo das tabernas, juntou-se gente. Os ciganos tinham um burro, muito bem apresentado, com pouca idade, bom de cavalaria e manso como as pedras da calçada. Não havia dúvida que valia tanto como o do Jaime e estavam a pedir vinte e quatro notas, enquanto o outro não desamarrava das quarenta. 

O Jaime não conseguiu aproximar-se da pechincha, mas, mesmo à distância, pôde ver que o animal não via do olho esquerdo – os ciganos tinham-no à rédea curta e estavam sempre nesse lado do animal –. 

O Jaime viu ainda, embora a albarda nunca fosse tirada, que havia sinais de cicatrizes por cima dos quartos traseiros e numa das patas estavam sobrepostas duas ferraduras. 

O comprador mais entusiasmado era o Ti’Jorge Moleiro que não gostava do Jaime nem usava os seus serviços. 

Gabava-se de saber tosquiar melhor que o Jaime e que ainda o Jaime não era nado já ela mexia em bestas. 

Daí a razão do Jaime se afastar do novelo de gente que presenciava o negócio, como convinha aos ciganos, e se refugiar na taberna a beber um copo e, de conversa com clientes seus de longa data, foi enumerando as razões por que o burro dos ciganos era tão barato. 

Feito o trato e passadas as notas, os ciganos desapareceram como que por encanto e, todo vaidoso da sua aquisição, entrava na tasca o Ti’Jorge, para comemorar o bom negócio que acabava de fazer. 

Atirou, assim como que em ar de desafio: Ó Jaime, não queres dar quarenta notas pelo belo animal que acabo de comprar?!... Com albarda e tudo, ainda te tiro cinco notas. Eu ganho bom dinheiro e tu ficas com uma estampa de burro. Aproveita, homem, pois nem sempre encontras uma pechincha destas. 

Olhe Ti’Jorge, caro ou barato, vendo o que é meu, sirvo os meus clientes e, pode estar certo que não vendo gado cego, descomposto de quartos traseiros, com costelas partidas, ou coisa pior, e com duas ferraduras na mesma pata. Deus lhe dê mais saúde que a do animal que acaba de comprar. 

Embora quando eu nasci já o Ti’Jorge mexesse em bestas, estes dois olhos que a terra me há-de comer, vêem melhor os defeitos dos burros e as manhas dos ciganos que o Ti’Jorge alguma vez há-de enxergar. 

E, voltando-se para a assistência que entretanto se ia juntando, disse, com calma e serenidade: quando alguém quiser uma besta mais ou menos brava, mas sem maleita e defeito físico grave, pode pedir o meu conselho, ou comprar os meus animais – não levo nada por isso, desde que esses amigos não saibam mais do que eu e peçam, por isso, a minha ajuda... 

Nesta altura já muitos iam dizendo, em surdina, mas perfeitamente audível na assistência: mas que diabo quer o Jaime dizer quando se refere a animais sem maleita e defeito físico grave?... E aquela de gado cego, com costela partida e duas ferraduras numa pata? Aqui há gato! … 

Até o Ti’Jorge, começava a cair em si e a interrogar-se sobre o que quereria o cigano dizer. Mas não daria, ainda, parte de fraco e, para rematar, pediu mais uns copos para os circunstantes. 

Porém, logo que os ânimos serenaram, saiu, sorrateiramente, e dirigiu-se ao palheiro onde tinha guardado o animal. 

Qual não foi o seu espanto quando viu o burrito deitado, mostrando uma enorme cicatriz na região lombar, levantando-se com dificuldade, com uma perna a claudicar e mostrando, de facto, cegueira num olho. 

Vociferou e saiu do palheiro proferindo as maiores barbaridades e impropérios contra os ciganos que, tinham dado “às de vila Diogo” e desaparecido, como que por encanto. 

Recolheu-se a casa e menos de oito dias passados, já com o burro enterrado e mais umas três notas gastas com o veterinário, atreveu-se a entrar na taberna, avisando que não lhe falassem mais de burros, nem de ciganos. 

Todavia, fazia a justiça de dizer que, quanto a ciganos, só o Jaime merecia ser bem recebido; era o terceiro negócio que fechava com ciganos e sempre fora enganado. 

De futuro, só comprarei bestas ao Jaime, ou com o seu conselho. Logo que por cá apareça, há-de ter um bom jantarinho de carne, como pedido das minhas desculpas.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O Chico de Baleizão


O Chico cigano nasceu, algures, nas terras da Amareleja, mas, desde sempre, foi conhecido pelo cigano de Baleizão, ou o Chico de Baleizão..

Vivia ali pela vila, não faltava a uma feira de Serpa ou de Beja, e uma rapariguita das Neves, pouco mais que criança, com quem teve um derriço, obrigava-o a dar algumas voltas, antes de entrar em Beja.

Não era primeira figura de coisa nenhuma, mas não faltava a qualquer evento, desde negócios a zaragatas, onde andassem, por perto, os ciganos. 

Acabou por juntar-se com uma ciganita, do clã dos Mendes, normalmente com arraiais em Barbas de Lebre, mesmo no limite de Baleizão. 

O seu maior amigo era um cigano da Cabeça Gorda que lhe arranjava as bestas e lhe ensinava os truques e disfarces utilizados nos negócios de gado.

O Chico aprendia bem as manhas e sabia negociar, pelo que, apesar da sua pouca idade, nunca se lhe acabava o dinheiro nos bolsos.

Quando chegou a idade das “sortes”, acompanhou os rapazes de Baleizão e lá foram a Beja para a inspeccão e apuramento, ou não, para o serviço militar.

Foi então que ficou célebre a galga que tentou meter ao médico militar que o inspeccionava: 

Numa das lengalengas em que era artista, disse ao senhor doutor que era uma peninha que o Chico cigano não pudesse servir a Pátria. 

É que, senhor doutor, estes dois olhinhos que aqui vê, nunca viram, são ceguinhos desde que “narceram”!... 

“Atão” o senhor doutor vê aquela mosquita ali na parede?!... 

É claro que vejo, respondeu o doutor!... Está ali!..

Pois eu não vejo, senhor doutor, disse, tristemente, o Chico…

Bem, a coisa lá passou, e, nos editais, vinha à frente do nome do Francisco Simão, a indicação de livre de serviço militar.

Ao meio da tarde, depois da almoçarada do costume, os rapazes das sortes juntaram-se e foram ao cinema, o que, para alguns, incluindo o Chico, era a primeira vez que tal acontecia. 

Porém, o sargento que estivera nas inspecções foi também à sessão, no cinema e, ao deparar-se com o Chico, atirou-lhe, com ar ameaçador: 

Com que então, cego de nascença e aqui no cinema?!... O senhor doutor vai gostar de saber que, nesta terra, até os cegos vêm cinema!...

O Chico não se desmanchou e, voltando-se para o lado, disse: 

Oh! João… Não me digas que enganaram o pobre do Chico! … 

“Atão” isto não é a camioneta para Baleizão?!... 

O que é esse tal de cinema que os meus olhinhos nunca puderam ver?!...

E escapuliu-se, porta fora, para não mais ser visto.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O Courela

A dor no braço ainda não o apoquentara, naquele ano. 

A ciática não o castigava muito, a pontos de ainda não ter perdido um dia de trabalho desde o último Inverno. 

As ovelhitas e a cabra tinham tomado barriga e dado boas crias naquele ano.

Não podia queixar-se o Hermínio da Silva – vulgo Armindo Courela –, quando meditava na vida, baixado na latrina, atrás da pocilga do porco, no quintalzito de pouco mais de cem metros quadrados, lá ao fundo da nossa tapada, onde se dirigia todas as manhãs, logo que se levantava, depois de enrolar um paivante e dar as primeiras fumaças do dia.

Dali subiria a casa, meteria qualquer coisa na boca e dois dedais de aguardente, antes de enrolar mais um cigarro. 

Pegaria no enxadão ou na picareta, na saca com a bolsita do farnel e tomaria o rumo do poço ou da surriba, onde na altura, dava os dias.

O Ti’Armindo Courela”, assim conhecido porque o seu verdadeiro nome era invulgar e a alcunha o identificava com um avô conhecido por esse nome, era homem de fraca estatura física, mas rijo no trabalho. 

Não ficava atrás dos corpulentos camaradas com quem às vezes emparelhava e gabava-se de ninguém lhe pôr o pé adiante, a podar uma árvore, a enxertar uma vinha, ou a orientar um tiro, no fundo de um poço. 

Lá em casa, era um dos jornaleiros preferidos, ainda que, na opinião do meu avô, acigarrasse demais, acendendo uns cigarros com os outros e fosse mais cego por aguardente que o Diabo por almas. 

Depois, era homem que se podia deixar sozinho; tanto trabalhava ao lado do patrão como longe dele.

Desde que, ainda garoto, fez as ceifas, no Alentejo e Espanha, andou nas “alimpas” dos laranjais de Setúbal, nas podas das vinhas do Ribatejo e dos olivais do Pouchão, fez de tudo e tinha já mais de cem poços abertos na aldeia e povoações vizinhas. 

Das andanças por esse mundo além, contava histórias sem fim, normalmente romanceadas e sempre com o seu quê de interesse e espírito construtivo; defendia a honra e a dignidade acima de tudo e, como dizia bastas vezes, todas as profissões são importantes e dignas e honram quem as desempenha bem.

Porém, não se cansava de repetir, uma das suas histórias: a daquele grupo de gajos que, numa noite fria de Inverno, nos olivais do casal do Pouchão, onde o frio parece cortar a pele das orelhas e do nariz, o mandou pegar num saco grande – o maior que encontrasse no rancho – e os acompanhasse na caça aos gambozinos que, naquela noite sem luar, deviam andar saídos. 

O trabalho dele não era complicado: abria a boca do saco o mais que pudesse, num cruzamento de carreiros e esperava que os gambozinos, que os outros iam bater, para lá se dirigissem e entrassem no saco. 

Uma condição: não podia fumar ou fazer o mais pequeno barulho, se não espantava a caça e estragava tudo. 

Aguentaria até que eles voltassem para recolher a caça, que depois seria para fazer uma jantarada.

Depois de ter deixado de ouvir os batedores, cada vez mais longe, fez-se silêncio total, apenas cortado pelos noitibós, aves nocturnas e coaxar de rãs, nos charcos próximos. 

De vez em quando, espreitava para dentro do saco e só via escuridão; tomava o peso ao saco e parecia-lhe vazio, mas… havia que esperar. 

Até que, umas horas depois, com o sol já a anunciar-se na aurora, vieram os farsolas, embrulhados em mantas, depois de um sono bem dormido, buscar caçador e caça. 

E, com o ar mais inocente deste mundo, lastimaram que não tivesse apanhado nada, porque os gambozinos, naquela noite, andaram por outro lado; tinham ido enganar outro pató ….