segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Escola da Ti’Amélia



Passava na aldeia, pelos Santos e por alturas da Páscoa. 

Chegado ao alto da Portela da Casinha, parava a bicicleta, apeava-se e tocava a buzina, apertando duas, ou três, vezes a pêra de borracha.


Não tardavam a deitar o nariz de fora das janelas e dos postigos, as mulheres que nos fins de manhã ultimavam os trabalhos na cozinha.

Entre elas, a ti’ Maria Rosa conhecia aquele toque melhor que ninguém: o ourives era uma das visitas que mais apreciava; conhecia o senhor Emílio desde que, ainda rapazote, vinha, lá de Cantanhede, ao lado do pai, ajudando no negócio.


Antes de dar a volta, embora fazendo-se anunciar, o ourives dirigia-se à taberna e, sobre o balcão, ou numa mesa metálica ali perto, comia, num prato de esmalte, uma lata de atum com rodelas de cebola – muita cebola –, meio pão de quilo e um queijo fresco, acompanhados de uma “preta”.

Dali, aproveitando a hora de comer e depois, durante a sesta, passava em casa dos clientes, de que uma das principais era a Ti’Maria Rosa que nunca tivera filhos mas um rancho de afilhados, que gostava de obsequiar com medalhinhas, crucifixos, fios e brincos, de ouro e prata.

Para isso, comprava nas duas
passagens do ourives uma ou duas dúzias de peças.

Como dizia a boa mulher: há sempre um baptizado, uns anos, um crisma ou um casamento e é preciso ter qualquer coisa preparada.


Muitas vezes era também solicitado para avaliar algumas peças; apenas, como dizia a Ti’Maria Rosa, por gostar de saber o que tinha em casa.

Pacientemente, o senhor Emílio ia correspondendo aos desejos da freguesa, sabendo que se tratava de concorrência, uma vez que havia ali caso de penhor, ou empréstimo, com garantia em ouro, de alguém mais necessitado – a prestamista da terra –.


Dizia depois o protegido de santo Eloi: temos de ter muito cuidado; mandam avaliar a mesma peça a dois ou três ourives, perguntam a pureza do ouro, qual o preço do grama, se damos algum valor ao feitio, etc.

São pessoas que precisam de ter confiança em nós antes de comprarem.


Falámos algumas vezes com este homem de mala de lata – cheia de placas forradas com veludo preto, onde estavam fixados os objectos que vendia – fechada com cadeado, cuja chave, presa por corrente de prata, guardava no bolso das calças.

Numa dessas conversas veio à baila o caso da Ti’Amélia, uma velhota que vivia num tugúrio, no termo de Mouriscas, sempre só, desde que morreram os pais e um irmão, ceifado pela pneumónica, antes de adulto.

A Ti’Amélia, sempre andrajosamente vestida, vivia isolada do resto do mundo, tratando duas hortitas ao redor da choupana onde vivia.

Ausentava-se apenas para ir esmolar nas aldeias mais próximas e vendia os ovos das galinhas, alguma criação e uns cestos de maçãs.


A única coisa que comprava, que se soubesse, era uma ou outra peça de ouro, costume que herdara dos pais, cujo modo de vida fora bastante semelhante ao dela: pedindo de porta em porta e comprando pequenas peças de ouro.

Quando saía de casa ia descontraída, não revelando qualquer receio de que lhe assaltassem a morada.

Era o melhor dos disfarces, dando a entender que o que tinha – e todos sabiam que devia ter – não estaria ali, no meio daquela miséria.


Um dia, certamente por falta de alimentação, adoeceu, de nada valendo os remédios que o médico lhe receitou, pois nunca chegou a comprá-los.

Em poucos dias morreu.

Não houve grande consternação, nem apareceu ninguém a quem se pudesse assacar as despesas, sendo a Junta de Freguesia, na pessoa do Regedor, que se encarregou das exéquias e do enterro.


Apareceram uns parentes que apenas se encarregaram de revolver o local, em busca de qualquer coisa.

Nada foi encontrado, para além de uma pequena caixa redonda, de lata, com duas pequenas medalhas e um fiozito, sem valor.


Uns bons meses depois, o Regedor – Ti’Chico Alberto – aproveitando a passagem do ourives pela terra, mandou-o chamar a casa, para ter com ele um particular.

Convidou-o a entrar, ofereceu-lhe um cálice de vinho abafado e foi direito ao assunto: O senhor e antes de si seu pai, visitaram muitas vezes a cabana onde morava a velhota Amélia, lá para os lados da ribeira.


Depois da sua morte, nada se descobriu sobre o mistério do paradeiro do ouro que ela ia comprando e que, ao que se saiba, não dava a ninguém.

Deixe-me esclarecer que o que for encontrado, se alguma coisa for encontrada, reverterá a
favor da Junta de Freguesia – uma vez que se há alguém com direitos, devia ter aparecido para o enterro –.

Convidado a ajudar, o ourives acompanhou o Regedor até ao local onde várias vezes se tinha encontrado com a velhota e feito alguns negócios.

Parecia que tinha havido ali um trabalho de escavações e pesquisas arqueológicas; estava tudo revolvido.

Todavia o ourives foi dizendo que a velhota vinha da cozinha, ou ia para lá, quando fazia negócios com ele, quer se tratasse de ir buscar dinheiro, quer fosse guardar o que acabara de comprar.


Pois vamos ver que diabo podemos encontrar lá, senhor Emílio.

E foram até junto do local onde se fazia a fogueira e se guardava a lenha.

Olharam para todos os lados, bateram em todas as paredes que ainda estavam de pé e, nada....


Casualmente, junto de uns restos de cinza, ao bater numa das lajes, o ti Chico sentiu sinal de oco e voltou a insistir, chamando a atenção do ourives, que se baixou para ouvir.

Afastada a lenha, o Regedor passou os dedos ao redor da pedra e sentiu, num dos lados de trás, uma ranhura, onde pôde meter a mão.


Como que por encanto, a laje arredou-se e, por baixo, num buraco de mais de dois palmos de fundo, estava qualquer coisa envolvida num pano sujo.

O Regedor agarrou o achado e tirou-o para fora do buraco.

Ao abrir o pano, deparou-se com uma caixa rectangular, de lata, com mais de um palmo de lado.

Abriu-a e nem queria acreditar no que os seus olhos contemplavam.


Olhou para o ourives e... atónitos, nem acreditavam no que estavam a ver: centenas de objectos de ouro e prata, alguns deles muito antigos.

Meteram tudo numa bolsa de trapos e foram à taberna pesar o achado – o ourives não tinha balança para tão grande quantidade –: sete quilos e cento e cinquenta gramas.

Portanto, mais de sete quilos de ouro.


O ourives fez as contas de cabeça e disse para o Regedor: uma pequena fortuna, senhor Francisco; aí uns duzentos e cinquenta contos – o grama era a trinta escudos, mas para aquele ouro conseguia-se um pouco mais por cada grama.

Durante três dias o senhor Emílio foi hóspede do Regedor, passando o tempo a analisar e descrever todos os objectos e avaliando-os.

No final, disse: há aqui peças de muito valor; se bem que o que conta é o peso do ouro; há peças com mais de cento e cinquenta anos, o que quer dizer que a “colecção” é obra de várias gerações; eu, até hoje, nunca vi nada igual, ou sequer parecido.

Terá de consultar uma casa especializada, para avaliar tudo isto; se quiser indico-lhe duas, ou três casas – antiquários do Porto, ou fabricantes de Gondomar –.


Com o produto da venda do espólio da Ti’Amélia, que rendeu duzentos e oitenta contos, o Regedor gratificou, generosamente o ourives, e fundou uma Associação de Melhoramentos, na Freguesia, cujas primeiras obras foram: construção da escola primária, arranjo exterior e interior da igreja, obras na casa paroquial, compra de paramentos e imagens para a igreja, arranjos de diversos caminhos, das fontes da Terra e comparticipação na ligação da rede de electricidade.

Nas ruínas da velha escola, hoje cobertas de mato e silvas, ainda se pode ler, numa das pedras da portada: Escola Primária ti’Amélia.

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