quinta-feira, 18 de julho de 2013
Abílio “vai-de-viagem”
Muitos, de gerações mais novas, nem lhe conheciam o verdadeiro nome – Abílio –, que recebeu na Pia Baptismal, quando, já andando e correndo tudo, pelo seu pé, o foram sacramentar ao Penhascoso.
De família mal remediada, vivia nuns casebres lá para o fundo do povo.
Muitos dias da sua meninice foram passados nas duas hortitas da família, ou no quintal ao pé da porta.
Guardava duas ovelhas e quatro cabras e ia enganando a fome com o que apanhava.
Na altura da escola, fez o que se lhe exigiu – o exame da quarta classe – e mais longe não foi.
Dois anos depois já seguia para a ceifa, lá para o Alentejo, na companha do Ti’Chico “Manajeiro”.
O Abílio comia que nem um desalmado e era de muito boa boca, no dizer do manajeiro; tinha uns apartes engraçados e não faltava ao respeito a quem quer que fosse.
Numa palavra: gostava do garoto.
Numa tarde de imenso calor, veio o manteeiro com os quatro barranhões de gaspacho, os barris da água e um cesto com os corchos e os casqueiros partidos aos quartos.
Dispôs tudo debaixo duma azinheira e fez sinal ao manajeiro que tudo estava pronto.
Ouviu-se, pouco depois, a voz de “alto para jantar”.
Cada um tomou o seu lugar, pegou na colher e, após uma breve oração, foi dada a voz de comer.
Todos se fizeram à “bóia”, com sofreguidão, e foram comendo.
A certa altura caiu um gafanhoto, de tamanho médio, no barranhão, frente ao Abílio.
Não se incomodou o rapazote e, metendo o visitante inesperado na colher, como que num ritual, disse, com voz grave e baixa:
“Encolhe as asas que vais-de-viagem; se andares depressa ainda apanhas o teu irmão” e comeu o pitéu, com toda a naturalidade.
A coisa terá passado despercebida a alguns camaradas; porém, o Flores, mais judeu que os da Galileia, começou a andar de olho no Abílio.
Não foi preciso esperar muito tempo para que uma mosca caísse ao alcance do Abílio e tivesse o mesmo destino do gafanhoto, em ritual semelhante.
Tanto bastou para que o Flores e o Alberto espalhassem a alcunha do “vai-de-viagem”.
O Abílio, impávido e sereno, continuou a comer verdugos, pernas de rãs, ouriços-cacheiros, raposas, corvos e andorinhas.
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