O “Manuel do Vale” tinha uma força de mãos verdadeiramente anormal; coisa a que lançasse a fateixa, não largava mais.
Era o único homem da aldeia com tez encarniçada, tipo “viking”, com olhos claros – muito claros mesmo – e mais sardas que o habitual nos sardentos.
Na escola nunca foi brilhante; era o bombo da festa, onde a Dª Benilde descarregava as iras – e tantas elas eram: por ser solteirona e sempre mal amada, por ser feia e juntar a isso alguma falta de cuidado na aparência e na própria higiene pessoal, por viver isolada do Mundo e da Sociedade e pelos achaques que a aproximação dos cinquenta anos lhe causavam.
Depois do exame o Manel cresceu e fez-se homem, mas nunca esqueceu os puxões de orelhas, as varadas quando estava no quadro preto a fazer as contas, as reguadas com que era mimado quando não acertava os problemas, ou tinha mais de três erros no ditado e as orelhadas quando não sabia as capitais dos países, ou o cognome dos nossos reis.
Um parente do Manel, que embarcara para as Áfricas, havia mais de vinte anos, antes, portanto, de a Dª Benilde ir para a aldeia, viria de férias e, segundo fez constar, para procurar noiva e casar-se.
O cenário, de aparência muito simples, pôs em alvoroço a cabeça do Manel, que, de si para si, ia pensando: o meu primo quer casar-se e uma das primeiras hipóteses vai ser a Professora.
Eu queria muito que ele me levasse com ele, no regresso ao Congo.
Será que irei conseguir esquecer tudo o que aquela bruxa me fez passar durante os cinco anos em que foi minha professora?
E como será ela como minha prima e mulher do meu futuro patrão?
Que sentimentos terá ela, agora, por mim?
Nos últimos dez anos – o Manel estava então com vinte e quatro –, apenas uma, ou duas vezes, falara com a Dª Benilde e continuavam bem presentes as “simpatias” com que o “mimara”, em cinco anos de escola.
Mas o que lá vai, lá vai, e se não fosse ela, se calhar, nunca teria sido o homem que era!
Havia de ser o que Deus quisesse, pensava o Manel!...
A notícia sobre a vinda próxima do Artur foi-se espalhando na aldeia e havia muita gente interessada no bom partido que se aproximava.
A Professora não era excepção; embora se mostrasse alheia e desinteressada, foi-se inteirando de tudo: quem era o Artur? Que idade tinha? Que namoradas tinha tido na terra, ou nas redondezas? Que pessoas podiam ter mais influência sobre ele?
Ao chegar aqui, às influências, as informações iam todas para a mãe do Manel do Vale, que fora seu aluno e pouco lhe falava.
Ouviu dizer que o rapaz, já homem, pensava ir com o primo, para as Áfricas.
A ti Maria Albertina não tinha a mesma impressão que o filho Manel, acerca da Professora; eras um grande calaceiro e foi ela que te obrigou a estudar e te deu as bases que fizeram de ti o homem que hoje és.
Se não fossem os cuidados da Sra. Professora, nem o exame tinhas feito; se te deu, nesse corpo, fez o que eu lhe pedi, não te partiu nada e só se perderam as que caíram no chão.
E repetia, vezes sem conta, esta ladainha, que o Manel já sabia de cor.
Quanto ao sobrinho Artur, a melhor solução seria mesmo a Professora, pensava, secretamente a tia Maria Albertina.
Começou por espalhar, devagarinho, a ideia de que o homem, na casa dos quarenta e cinco anos quererá uma senhora educada, sem namorados conhecidos e respeitadora.
E, sempre que lhe parecia que a ideia poderia chegar até ao sobrinho, ia falando na Senhora Professora.
Uma senhora, perto dos cinquenta, talvez já não dê filhos. O Artur deverá ser levado a aceitar isso, como uma vantagem.
Essa ideia batia forte na cabeça da tia Maria Albertina e tinha o seu fundamento: se o seu Manel fosse com o primo e a Professora e o casal já não tivesse filhos, podia ser que…, quem sabe se viria a herdar a fortuna do primo, ou a substituí-lo nos negócios, para que ele pudesse gozar melhor a vida.
A primeira coisa a fazer era aproximar o filho da Professora, para que pudesse facilitar a vida do primo, quando ele chegasse.
Mandou o filho falar, oficialmente, sobre a vinda do primo e matava, assim, dois coelhos com uma só cajadada: aproximava o filho de uma pessoa que poderia ser decisiva na escolha que o sobrinho Artur fizesse, quanto ao rapaz a levar com ele, para África, e dava a entender à Professora que contasse com ela para facilitar as coisas, quanto às tendências do sobrinho e à sua decisão, na escolha de noiva.
Foi, assim, que o Manel subiu um dia até ao cimo do casal, à casa das oliveiras da vinha, onde habitava a senhora Professora.
Era fim de tarde e a chegada dos dois, foi quase coincidente.
A Senhora acabava de descer da escola, situada uns cinquenta metros acima.
Depois de um breve cumprimento, expresso num simples olá Manuel!... Então como estás e que fazes na vida, homem?!...
Não há quem te veja?!... Mas, vamos entrando...; lá dentro estamos melhor e mais à vontade!...
Obrigado, senhora Professora; estou bem e faço pela vida, que graças ao que a senhora me ensinou e me fez aprender, me vai correndo menos-mal.
E seguiu atrás da senhora, que via agora com olhos diferentes dos de há dez anos.
Reparou na figura da bela mulher, que certamente agradaria ao primo Artur.
Dirigiram-se à sala de costura, onde muitos fins de tarde o Manel tinha estado, de castigo, a recitar os rios e as cidades, a conjugar os verbos e a escrever as palavras que errara no ditado, cem vezes cada uma.
Mas, isso ia longe… e, ambos estavam agora absortos por outros pensamentos:
A Professora tinha diante de si o homem que imaginara, dez anos atrás – másculo, cerrado de barba, olho muito claro, avantajado de estatura e envergonhado, como noutros tempos.
Mantinha o ar exótico, mais delicioso e misterioso que bonito, mas um homem … e que homem!...
O Manel olhava a mulher, madura, de formas perfeitas, cabelos apanhados, com uma saia um pouco acima do joelho… a Senhora que sempre vira como Professora, era agora olhada como mulher.
Foi o Manel que quebrou o silêncio, dizendo: Tenho um primo, chamado Artur, que foi para o Congo, há muitos anos. Mandou dizer que pensa vir a Portugal, rever a família, procurar noiva, casar, e escolher um parente para levar, como ajudante, nos negócios.
Nos três ou quatro meses que estará, por cá, de férias, quer resolver tudo isso.
Achámos, que a Senhora gostaria de saber, pois é alguém à altura de falar com o meu primo e que poderá ajudá-lo naquilo que ele necessitar; esperamos que ele fique hospedado em nossa casa.
Pois bem, Manel, agradece a tua mãe as atenções e cuidados e diz-lhe que podem contar comigo para tudo o que eu possa fazer, para ajudar a tornar o mais agradável possível a estadia do teu primo, cá na terra e na vossa casa, como é vosso desejo.
Quanto a ti, homem, gostei muito de te ver.
Não quero que te vás embora sem me prometeres que me vais dando notícias e que me vens ver, mais vezes.
Dá cumprimentos a tua mãe e agradece-lhe.
O Manel saiu e foi descendo, sem pressas, o caminho que bordejava as oliveiras.
A Professora, espreitando por uma frincha da janela, despia, com os olhos, o homem que se afastava, enquanto, com a imaginação, se extasiava, vendo o homem másculo, de ombros largos, cabelos um tudo-nada ruivos, olhos muito claros, barba cerrada, boca sensual, mãos fortes, mas anormalmente delicadas, para uma pessoa do campo, e....
Sem dar pelo desaparecimento do Manel, na curva do caminho, ao pé da fonte, deixou-se cair no canapé, onde passava grande parte do seu tempo e até dormitava, por vezes, antes de ir para a cama.
Foi tacteando o seu próprio corpo que se sentiu ruborizada, quando uma onda de calor, avassaladora, vinda do mais íntimo de si e parecendo que o sangue lhe fervia nas veias, a invadiu, completamente.
Nunca sentira nada assim.
Porém, num ápice, todo o corpo, do mais ínfimo e íntimo, ao mais volumoso e saliente, ficava duro, alvoroçava-se, contorcia-se e, como que vindo de um vulcão, cujo epicentro ela localizava, perfeitamente, sentiu um jorro de lava, incandescente, queimar-lhe as entranhas, para, logo em seguida, lhe provocar uma calma e serenidade, certamente raras, no comum dos mortais.
Inundada por uma maravilhosa paz interior, adormeceu, profundamente.
Durante os sonhos, voltou a ser menina, viu-se a entrar na igreja e a realizar sonhos que andavam já arredados dos seus projectos mais vulgares.
Quatro meses depois, na altura das vindimas, a Senhora Professora, Dª Benilde, embarcava com o marido Artur Marques Lopes, “o Brasileiro”, com destino ao Congo Belga.
Levavam muita bagagem e acompanhava-os o primo Manuel Marques Mendes, o Manel do Vale.
Havemos de encontrá-los, uns anos mais tarde, no Congo... mas isso é outra história.
Muitos, de gerações mais novas, nem lhe conheciam o verdadeiro nome – Abílio –, que recebeu na Pia Baptismal, quando, já andando e correndo tudo, pelo seu pé, o foram sacramentar ao Penhascoso.
De família mal remediada, vivia nuns casebres lá para o fundo do povo.
Muitos dias da sua meninice foram passados nas duas hortitas da família, ou no quintal ao pé da porta.
Guardava duas ovelhas e quatro cabras e ia enganando a fome com o que apanhava.
Na altura da escola, fez o que se lhe exigiu – o exame da quarta classe – e mais longe não foi.
Dois anos depois já seguia para a ceifa, lá para o Alentejo, na companha do Ti’Chico “Manajeiro”.
O Abílio comia que nem um desalmado e era de muito boa boca, no dizer do manajeiro; tinha uns apartes engraçados e não faltava ao respeito a quem quer que fosse.
Numa palavra: gostava do garoto.
Numa tarde de imenso calor, veio o manteeiro com os quatro barranhões de gaspacho, os barris da água e um cesto com os corchos e os casqueiros partidos aos quartos.
Dispôs tudo debaixo duma azinheira e fez sinal ao manajeiro que tudo estava pronto.
Ouviu-se, pouco depois, a voz de “alto para jantar”.
Cada um tomou o seu lugar, pegou na colher e, após uma breve oração, foi dada a voz de comer.
Todos se fizeram à “bóia”, com sofreguidão, e foram comendo.
A certa altura caiu um gafanhoto, de tamanho médio, no barranhão, frente ao Abílio.
Não se incomodou o rapazote e, metendo o visitante inesperado na colher, como que num ritual, disse, com voz grave e baixa:
“Encolhe as asas que vais-de-viagem; se andares depressa ainda apanhas o teu irmão” e comeu o pitéu, com toda a naturalidade.
A coisa terá passado despercebida a alguns camaradas; porém, o Flores, mais judeu que os da Galileia, começou a andar de olho no Abílio.
Não foi preciso esperar muito tempo para que uma mosca caísse ao alcance do Abílio e tivesse o mesmo destino do gafanhoto, em ritual semelhante.
Tanto bastou para que o Flores e o Alberto espalhassem a alcunha do “vai-de-viagem”.
O Abílio, impávido e sereno, continuou a comer verdugos, pernas de rãs, ouriços-cacheiros, raposas, corvos e andorinhas.
O palheiro – construção rudimentar, formada por quatro paredes de pedra e barro, tecto de telha vã de duas águas, porta de tábuas de pinho, presa por dois gonzos e uma fechadura do ferreiro da terra -, ainda estava, há poucos anos, em razoável estado de conservação.
Todavia, o incêndio que por ali passou em meados dos anos 90 transformou o palheiro num monte de cinzas e telhas, deixando de pé as paredes, para, mais tarde, as estevas e as balças acabarem por desfigurar o local, que está, praticamente, irreconhecível.
O palheiro da Renda, com uma dúzia de metros quadrados de área, era usado para guarda de fenos e pastagens, especialmente como local de arrecadação de emergência, quando as trovoadas de Maio não davam tempo para levar mais longe o ferrejo que secava ao sol.
A chave, guardada num requebro da parede, do lado direito da porta, era usada apenas por quem sabia do seu esconderijo e, presumindo-se, por isso, autorizado pelos seus donos.
O lugar não era, propriamente, um local de passagem, pelo que só as pessoas conhecedoras, ou intencionadas, por ali se desviavam e faziam uso do palheiro.
Um dos hóspedes habituais do local era o guarda-rios que, ou por não lhe apetecer montar a bicicleta pasteleira e ir para casa, nos confins de Alcaravela, ou por não sentir já o equilíbrio suficiente, ia até ao palheiro, curtir a bebedeira e passar a noite.
Para mais que, como dizia, sendo o local do palheiro a uns escassos vinte metros da ribeira, ficava no local de trabalho.
Sempre foi insuspeito o uso dado ao palheiro pelo guarda-rios; só na cabeça do moleiro que passava nas redondezas para ir para a azenha do Ferrugento, ali ao fundo do Cabecinho Agudo, se arquitectou uma maneira de pregar um cagaço, depois de lhe ter contado histórias sobre o local, na taberna.
Um dia, ao pôr-do-sol, o moleiro viu o guarda-rios ficar na taberna, quando se dirigia para a azenha.
Pelo caminho, atrás do macho carregado de taleigos, foi arquitectando o susto que pregaria ao guarda-rios no palheiro.
E passou aos factos:
Foi à azenha, pôs tudo a trabalhar, encheu a tremonha de grão, regulou a água, fechou o cãozito, para que o não seguisse, pensou o macho e esperou que baixasse o escuro para ir rondar o palheiro e acagaçar o guarda-rios.
O silêncio pesava sobre o escuro de breu e apenas um ou outro pirilampo cruzava o ar e interrompia o ladrar longínquo dos cães, lá ao cimo, na aldeia.
De uma fresta da porta do palheiro saía um ténue clarão; sinal de que o lugar já estava habitado.
Aproximou-se, espreitou, mas não conseguiu ver nada.
Ouviu vozes surdas e imperceptíveis, apercebendo-se, de imediato, que o guarda-rios não estava só.
Foi por trás, onde o palheiro era mais baixo, devido ao desnível do terreno, arredou, muito lentamente uma telha e olhou para dentro do palheiro, onde ardia, junto à porta, uma fogueira muito suave, de cujo lume se espalhava uma luz ténue que deu para ver dois corpos, sobre uma manta, aberta sobre um molho de palha.
Guarda-rios e companheira estavam muito juntos; o moleiro, apenas olhou mais uma vez, depois de fechar os olhos, e, com milhares de ideias na cabeça, retirou-se e dirigiu-se, cabisbaixo e acabrunhado, para a azenha.
Sentou-se, com a cabeça entre as mãos e meditou…
Nas muitas vezes que havia provocado o guarda-rios, caçoando do seu aspecto e lembrando-lhe que há testos para todas as panelas e ele ainda encontraria o dele; que afinal dentro do género dele até havia muito pior, e coisas do género.
Agora sentia-se incomodado com a calma e bonomia com que o guarda-rios ouvia todos os impropérios do moleiro e acabava por sorrir, como se nada fosse com ele.
Percebia, agora, o gozo que deviam dar ao guarda-rios as palavras com que pensava achincalhá-lo.
Vieram-lhe à mente todas as vezes que olhou para aquela figura insignificante, com um olho sempre vesgo e meio cerrado, uma perna arrastada e meio cambado de ombros, os trejeitos da boca e, não raro, uma baba ao canto do queixo.
Não sentia pena dele; considerava-o infeliz e nada fazia para o aliviar e, todavia, parecia que nada incomodavam o guarda-rios tais impropérios.
Agora entendia, agora sentia o ricochete de tudo o que lhe dissera.
Sem se dar pelo passar das horas, olhou o céu e reparou que a moagem estava quase no fim.
Era preciso tratar do macho e abrir o cão que continuava fechado, preparar tudo e partir para casa; onde, certamente, a mulher, já consolada pelo guarda-rios, tinha tido tempo de voltar e esperava, na cama.
A vida continuou e nem o moleiro, nem o guarda-rios, nem a mulher, alguma vez denotaram qualquer atitude estranha, quando se falavam, ao cruzar-se, na aldeia, ou na taberna.
O moleiro resolveu não deixar a mulher só, quando pressentia o guarda-rios por perto; a mulher e o guarda-rios, provavelmente, atribuíram ao acaso a falta de oportunidades para se encontrarem.
Só um pequeno papel, rabiscado pelo moleiro e misturado num rolo de documentos escondidos num buraco da azenha e encontrado anos depois da morte do moleiro, deu conta dos remorsos do seu autor e permitiu imaginar o cenário descrito.
Nunca, da boca dos três intervenientes, saiu qualquer palavra sobre o assunto.
Tinha altura abaixo de mediana, cabelos muito pretos e fartos, ombros anormalmente largos e rosto comprido, de que sobressaía o nariz, muito afiado.
Os olhos, muito negros e de expressão mais melancólica que triste, brilhavam por cima de uma barba negra e farta, mal cuidada e confundindo-se com a cabeleira.
O mais notório, todavia, era o tamanho dos pés – grandes e largos, com sinais de há muito não conhecerem calçado e encardidos pela sujidade acumulada –.
Caminhava com passo curto e apressado e não se misturava com os outros pedintes.
Vinha à aldeia todos os meses, visitando todas as casas como esmolante e, com algum laconismo, apelava à caridade alheia.
Terminada a volta, sentava-se na taberna e ia descarregando, da esmoleira para cima da balança, os nacos de pão, as batatas e cebolas, uma ou outra peça de fruta e uns pedaços de toucinho.
O azeite era pago à parte e, se aparecia algum enchido, diferente de farinheira, era retirado do conjunto da venda.
O Ti Manel, taberneiro e merceeiro, pagava tudo ao mesmo preço: quase sem olhar para a balança, abria a gaveta do dinheiro e retirava duas ou três moedas, que dariam para duas ou três “metades” de vinho.
E ia logo enchendo o copo que, ainda antes de ser lavado, havia de servir para a segunda e terceira doses.
Aí pelas duas horas, havia sempre uma ou outra alma caridosa que vinha trazer a melhor esmola: uma malga de caldo quente.
Depois disso “o minhoto” falava, ralhava consigo próprio, interrogava-se e acabava por cair em sonolência, até que, pouco depois do pôr-do-sol, se recolhia à “malhada”.
No outro dia, ao romper do sol, já andava a dar a volta noutra aldeia.
Dizia-se, desta personagem enigmática, que tinha sido homem de letras, transtornado por algo, muitos anos antes.
Teria à volta de sessenta anos – para mais – e, quando sóbrio, o que era raro, ainda acertava no que dizia e discorria, com os estudantes da terra, sobre Geografia, História e Ciências; deixava escapar conhecimentos de francês, espanhol e inglês, até que...
Calava-se, de repente, quando se apercebia que estava a falar de mais.
Corriam mais de uma dúzia de histórias sobre a “biografia do minhoto”: que era casado e tinha filhos; que a mulher o tentara envenenar e expulsara de casa; que uma fraqueza das ideias o fizera “variar” e abandonar tudo; que era senhor de meios de fortuna, mas preferia a vida de ermitão e pedinte, etc.
A verdade, porém, é que ninguém ousava interpelá-lo, sobre a sua identidade ou vida.
Se era apanhado pela guarda, fazia-se de parvo e apoucado e, ainda antes que conspurcasse e infestasse os calabouços, era posto em liberdade.
Quando não reagia violentamente a uma ou outra pergunta, respondia: sou o minhoto, não tenho terra, nem família, nem sei mais nada a meu respeito... ponto final e acabou-se a conversa!...
Um dia, já com os copos, outro mendigo ameaçou-o de dizer tudo a respeito dele.
Conheço-te, bem sabes, a ti e a tua família; não és do Minho...
Não disse mais nada, pois uma paulada bem assente, imobilizou e calou de vez o atrevido pedinte.
Quanto ao minhoto, com o pau na mão e a tremer de medo, escapuliu-se, sem dizer ai nem ui.
Presente ao cabo-de-ordens da aldeia, o minhoto, manso como um cordeiro, entregou o cajado e aguardou.
Depois de passar o raspanete do costume, o ti Manel Mendes, mandou “o minhoto” em paz e avisou que não se metessem com ele, pois em mais de vinte ou trinta anos que passava pela aldeia, nunca provocara desacatos.
Daí em diante, todos os que tentassem, ou simplesmente ameaçassem, identificá-lo, eram avisados que não deveriam fazê-lo, uma vez que, a partir daí, tudo poderia acontecer-lhes... ponto final!....
Não gostava que falassem da vida dele e tinha esse direito, acrescentava o cabo-de-ordens.
Correram os anos e “o minhoto” foi passando, tal como tantos outros mendigos, pela aldeia.
Um dia, porém, chegou a notícia:
O “pobre”, a que sempre chamaram “o minhoto”, morreu, lá para os lados do Codes.
O nome verdadeiro – José de Sousa – foi encontrado entre os trastes que guardava no sarrão das esmolas.
Foi professor e viveu bem, numa aldeia dos contrafortes da Serra da Estrela.
Esteve emigrado, na Europa e ganhou muito dinheiro na candonga e no volfrâmio.
Foi atraiçoado pela mulher, conluiada com um sócio dele, acabando os dois por desaparecer, misteriosamente.
Trabalhou nas minas da Panasqueira, tendo desaparecido após uma pequena derrocada numa das galerias.
Não mais foi referenciado e, não se sabe bem porquê, não consta que tivesse sido procurado.
Serão dignos de crédito estes elementos referentes “ao minhoto”, ou continuarão a ser peças de uma existência obscura, que nunca conheceremos e que o próprio guardou, até ao fim dos seus dias?