domingo, 23 de dezembro de 2012

NATAL e ANO NOVO

BOAS FESTAS
e
ANO NOVO
acima das expectativas

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Nocturnos



 Quando releio as histórias de gente simples - na maior parte das vezes, nem me lembro delas -, penso que por trás de cada uma há outras histórias, por escrever, que acabarão, forçosamente, por ficar inéditas. 

Quando leio histórias escritas por outrem, tenho, algumas vezes, a sensação de que já as havia lido. E, nesses casos, acabo interrogando-me se isso corresponde à realidade, ou se é pura suposição. 

E, nestas frustrações – a palavra é demasiado contundente, talvez -, na maior parte das vezes nocturnas, lá continuo a apelar à imaginação, a negacear a memória e a dar largas às ideias emergentes do turbilhão que rodopia no meu imaginário. 

E vêm-me à ideia as palavras de um grande mestre de Psicologia que me acompanhou na juventude e me alertou para diversas vantagens que podemos tirar de ler, em quantidade e qualidade, pensar - mesmo sem consequências, como ele dizia -, escrever – ainda que sem nexo ou objectivo imediato -. 

Grande dr. Paínho, caro dr. Martins de Castro: como vos relembro e agradeço tantas coisas. 

Aquelas maçadas de aplicar e aferir testes, aquelas dissertações sobre sensações e percepções, aquelas regras de expressão escrita e oral, aquelas palestras que a princípio foram verdadeiros suplícios e acabaram por ser autênticos prazeres. 

As mnemónicas, os truques, os tópicos. Os dedos, as mãos, o olhar sem ver, o feedback da assistência. Tudo!.. 

O recurso sistemático e recorrente aos dicionários, aos prontuários, às gramáticas e vocabulários. 

As conversas, as declamações, os discursos na casa de banho, frente ao espelho; as sessões na professora Corina Freire, para aperfeiçoamento do aparelho vocal, da dicção, da colocação da voz, quer na fala, quer no canto ou na declamação; as aulas do doutor Bailarim, para desenvolver as acções de convencimento, os ritmos e intensidade da voz, os ataques e cedências durante as exposições… 

As leituras dos mestres da nossa literatura, quer em poesia, quer em prosa - conto, ensaio ou romance -. 

Tudo, tudo perpassa por uma noite de insónias, num silêncio de aldeia, onde se sentem e experimentam os mais puros e autênticos nocturnos, feitos de silêncios, de cogitações, de medos e, finalmente, de esperança e de alegria. 

Repentinamente, vem-me ao espírito a aflição do garoto que, na sala de aula, se levanta, lembrando a professora que é primeiro – sou Feliz e ele é Varisto – e, como a senhora professora disse, segue-se a ordem do alfabeto. 

Ele será dos últimos: depois dele, só o Xico e o Zé. 

Tens razão, mas ele é Evaristo – se bem que cá na terra ninguém o conheça por esse nome – e fala primeiro que tu – que és Félix, apesar de toda a gente te tratar por Feliz –. 

Coisas desconexas, sem qualquer ordem ou razão. 

São ideias e cenas patéticas, como estas, que acabam por amainar a vertigem do carrocel que em turbilhão vai mostrando e dando alma às personagens e histórias de gente simples

Parecem os transístores, acabados de inventar na altura da minha adolescência e depois os chips e outras coisas que, isoladamente, não valem nada, mas acabam por representar um avanço em qualquer novo aparelho de imagem, ou de som, em que a electrónica é fundamental e imprescindível e que vemos como um todo, ignorando a complexidade dos seus componentes. 

Como as cores dum quadro que só depois de perderem a sua identidade e interagirem entre si, criam, para que, depois, a imaginação faça o resto. 

Como os escritores que utilizando palavras com pouco significado, quando isoladas, conseguem criar cenários, personagens e factos que o comum das pessoas não imaginaria, antes de as ter lido. 

Se os pintores e escritores pudessem, séculos depois da produção das suas obras, ver, sentir e compreender todos os sentimentos que despertaram, todas as reacções que desencadearam, certamente muita coisa teria sido diferente. 

Para melhor, ou para pior, mas de certeza, diferente. 

Se as personagens da História pudessem ler os factos, ver os filmes que originaram, sentir os reflexos das vitórias e das derrotas, certamente teriam dado rumos diferentes às suas acções. 

Mas tudo isto é facilitado ao romancista; ele cria e dá vida às personagens que povoam as suas obras. 

É um privilegiado e a sua liberdade e criatividade nasce muitas vezes nos nocturnos, povoados de realidades e ficções, de cenas do dia-a-dia, do passado próximo ou longínquo, do futuro, incerto e hipotético, ou, em última análise, do nunca, lá nos confins do talvez. 

Se o historiador pudesse dar vida às personagens que trata e maneja quando escreve, seria muito bom. 

Ver desfilar os grandes génios que já cá não estão, seria, certamente, um desejo e uma cena imperdível por qualquer historiador. 

Mas tal não está ao seu alcance, nem ao do comum dos mortais; representa um privilégio do romancista e do poeta, entre outros, sem esquecer os contadores de histórias. 

Acresce a toda esta panóplia de recursos derivados da magia e do jogo das palavras, a imaginação. 

Ela condiciona e modela todos os tipos de análise e vai onde outros recursos não chegam. Penetra onde as técnicas mais sensíveis e os mais rebuscados recursos da arte que cria e recria, com os mais rebuscados efeitos, mas será sempre aleatório encenar o peso da escuridão, dar corpo ao medo, colorir a bruma do nevoeiro, dosear o barulho da cacimba, o sussurro da brisa, ou o silvar do vento. 

Depois, materializar o crepitar da lareira, o bruxulear da luz da candeia, o regougar da raposa ou o piar da coruja atrás do sino da capela, são sensações que ficaram da infância daqueles que, como eu, tiveram e sentiram aquelas realidades. 

Aquela instalação eléctrica em que dois fios finíssimos, partindo de uma pilha de um velho “foxe” iam acabar nas roscas e no chumbo duma lâmpada, foi instalada no meu quarto, nos baixos da casa de fora, onde eu passei a dormir quando já andava no colégio. 

Aí pelos doze anos. 

E o medo? O que é, como se caracteriza e mede? Como se doseia e que reflexos tem, sobretudo durante essas longas noites de inverno? 

Primeiro o escuro e os sons ou a falta deles; depois todo o rol de imagens relatadas para suportar as crendices e as superstições; por fim a imaginação mais ou menos fértil, conforme a força do sono vai permitindo. 

Em boa verdade tudo não passa de pouco mais que nada; andar de noite, sob um escuro de breu, é apenas mais difícil porque não vemos os obstáculos. 

As almas do outro mundo, os monstros e contratempos que povoam a imaginação, são fantasias. Mas… 

Lembro-me de ver homens feitos, com cultura acima da média e mesmo superior, nas noites de instrução nocturna na Tapada de Mafra, a chorar e a implorar que os ajudassem, porque tinham medo, porque o pavor da escuridão lhes tolhia os movimentos e qualquer tipo de reacção. Completamente parados e a tremer. 

Depois, mais tarde, mas matas da Guiné, devorados por milhares de mosquitos, imobilizados em emboscadas que pareciam nunca ter fim, vi homens pedirem a um companheiro para ficarem bem perto dele, porque tinham pavor de se sentirem sozinhos. 

Aqui somava-se a todo o terror da solidão, o instinto de conservação da espécie e chegava-se aos suores frios, ao aumento do ritmo cardíaco, ao dilatar das pupilas e à sensação de ouvir vozes, no mais profundo silêncio da noite. 

Estados de alma indescritíveis. 

As pessoas respeitam e adoram o silêncio talvez porque têm medo dele. Recebem, avidamente, o renascer do sol, como confirmação de que a ordem no mundo não se alterou durante a ausência da luz do dia. 

O imaginário, hiperbólico e destemperado, desvanece-se com a alvorada. O som do ladrar dos cães volta ao normal, a trovoada foi cantar para outro lado – para onde as rezas a Santa Bárbara a mandaram -. A natureza votou a renascer, não florindo e verdejando, mas enchendo tudo o que é ribeiro, riacho ou charco, que havia tempos estavam amortecidos. 

Passou a noite de inverno na aldeia da minha meninice, onde não havia luz eléctrica, onde de noite tudo se apagava e se calava. 

Talvez, algumas vezes, eu e os meus livros fossemos a única coisa acordada na aldeia – até que o petróleo do candeeiro se acabasse e eu acabasse também por adormecer. 

Das muitas coisas que herdei do meu avô, refiro, pela negativa o não ter medo. 

Muitas vezes me explicou, como podia, sempre através de histórias, que medo era coisa que não existia, porque nunca ninguém fora capaz de lho mostrar e se havia coisas que respeitava, não era porque tivesse medo delas, mas porque lhe tinha respeito. 

Devo ter percebido, avô; pois, anos mais tarde, quando fui obrigado a trabalhar com explosivos, a primeira coisa que me ensinaram foi: “trata-se de coisas muito perigosas; são tratadas e manipuladas sem medo, mas com respeito”

E, por extensão, sempre usei aquela máxima, mesmo não estando a trabalhar com explosivos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O relógio do avô



O “relógio” que sempre conheci na pilheira da casa de fora - de onde apenas o vi sair para dentro duma saca de adubo que o levou à do Ti ‘Machado, da Carregueira, para ver se lhe dava um jeito – e a “folhinha” presa num prego, na lareira, ao lado do canto onde, invariavelmente, se sentava o meu avô, eram as duas relíquias de consulta diária, na casa do Casal, onde vivi a minha primeira década, até ir para o colégio de Mação. 

Falemos, hoje, do relógio. 

A pilheira da casa de fora, era uma pequena cavidade na parede, terminada na parte superior em ogiva e com a base formada por uma laje de pedra, que saía da parede coisa de um palmo. 

Era sobre essa base, meio dentro da pilheira, meio saliente, que estava o relógio. 

Acho que terei nascido a ouvi-lo e sempre me lembro de ter adormecido ao som do seu tic-tac. 

Salvo, claro está, naquela vez, em que, por uns dias, foi a reparar e limpar ao curioso-pseudo-relojoeiro, que nas horas de descanso da sua fábrica de pregos e outros artigos de arame, "arranjava" relógios. 

Entre a caixa do relógio e o fundo da pilheira, havia uma velha caixa de folha com letras e desenhos, que fora embalagem de bolachas, recebida como oferta, quando a tia Conceição tinha estado em Lisboa, no hospital. 

Essa caixa era a que servia para minha avó, e mãe, guardarem as economias que iam angariando com as pequenas vendas de ovos, queijos, azeite, vinho, aguardente, frangos e galinhas. 

Era, com essas minguadas verbas que mercavam os tecidos que os paneiros – O João gregório e o Adelino, da Alcaravela e a Ti ‘Carlota, do Penhascoso - vinham vender e onde minha mãe se abastecia para confeccionar camisas, calças, ceroulas, casacos e outras roupas, para as sete pessoas da casa. 

Saía dali, também, para mercearia e sabão, comprados na loja e para as sardinhas, que as peixeiras de Alcaravela, traziam todas as semanas. 

Só muito raramente se pedia outro dinheiro aos homens da casa, para o seu governo. 

Desde sempre os meus pais viveram com os meus avós; a minha tia morreu ainda menina e nós – as crianças – dormíamos na casa do Casal, indo os meus pais, todos os dias, depois da ceia para a “casa nova”, lá nas oliveiras da “horta velha”, onde apenas dormiam. 

A vida era retomada, logo na manhã seguinte, na casa do Casal. 

A “casa nova” passou a ser a casa de todas as professoras da terra; ficava a poucos metros da escola e só à noite servia de local de dormida dos donos. 

Mas, voltando ao relógio: uma vez por semana, meu avô puxava a tripeça, de cortiça, que estava debaixo da mesa, dita do relógio, e, de cima dela, abria a porta, tirava uma chave formada por um tubo de secção quadrangular e terminando em duas aselhas redondas. 

Depois enfiava a chave nas hastes das cordas para as fazer girar até prenderem. 

Do lado esquerdo ficava a corda das horas e do lado direito a corda do mecanismo ou engenho. 

Enquanto estava a rodar a chave – a dar corda -, o meu avô parava a pêndula. 

Depois, adiantava mais um ou dois minutos, para compensar o tempo que parara o relógio e impulsionava a pêndula, restabelecendo o tic-tac, inconfundível. 

É preciso cuidado, pois uma volta a mais na corda pode parti-la, dizia-me o meu avô. 

E lá voltava a história: Uma ocasião, o meu Ti‘Valentim do Melhim, que Deus haja, de onde herdei este relógio, quis ver até onde ia a força da corda e acabou por parti-la. 

Depois, olha, teve de levar o relógio ao Ti‘Machado velho, pai deste que está lá agora, para o arranjar. 

Como ele já não era novo e talvez já visse mal, ou não sei que diabo de relojoeiro era aquele, não se entendeu com aquilo e mandou o meu tio ao Mação a casa de um velhote – Diogo, se chamava ele -.

Ali, em menos de meia hora, caçou-lhe dois vinténs, por meter a corda no sítio, pois tinha saltado, oleado e limpo o mecanismo.

 Limpou, limpou…mas foi os vinténs do meu tio; mas foi dinheiro abençoado, pois, até hoje, não voltou a parar. 

Olha que comigo já está há uns quarenta anos e lá no Melhim, deve ter estado mais que isso. 

Sempre a trabalhar, a não ser três ou quatro vezes que estive fora, quando fui a Lisboa ver a tua tia, que esteve lá no hospital e ninguém lhe deu corda. 

Deixaram para mim, pois sabem que gosto de ser eu a fazê-lo. 

Um dia, aí uns vinte anos mais tarde, o relógio começou a atrasar-se, a parar de vez em quando e o mecanismo das horas não batia as badaladas. 

Meu pai retirou o relógio, embrulhou-o nuns panos e trouxe o relógio da “casa nova” para o Casal. 

O velho relógio ficou anos – mais de quinze ou vinte – dentro do oratório, no canto da casa de fora. 

Até que um dia, talvez uns vinte anos depois de meu avô nos ter deixado, trouxe o relógio para minha casa, combinando que o novo seria para minha irmã. 

Em minha casa esteve bastante tempo sem trabalhar; um ou dois relojoeiros onde o levámos diziam que era um relógio vulgar, sem marca de valor e a própria caixa de madeira teria também de ser substituída, ou restaurada. 

Até que a minha mulher falou ao seu relojoeiro e não só foi restaurada a caixa como foi posto o relógio a trabalhar. 

E há vários anos que marcha e me acompanha com o velho tic-tac que sempre me adormeceu, lá na Serra. 

O relógio não tem grande valor comercial – é, todavia, das peças mais valiosas que guardo em casa -. 

Pelo que acima ficou dito, e porque nem o meu avô, nem o meu pai, tiveram objectos de valor para me deixar, guardo símbolos e recordações. 

Não sei se terá alguma coisa a ver com o relógio do meu avô Zé Lourinho… gosto de relógios e, por onde andei – em casa, nos escritórios -, havia sempre vários relógios. 

Quando, nas longas noites de inverno, o escuro e a chuva, caíam sobre a aldeia, nada mais restando que silêncio, o tic-tac do relógio e o bater das horas, acompanhavam-me e adormeciam-me. 

Também me acordavam, quando nas manhãs das segundas-feiras, ainda completamente de noite e, por vezes a ouvir a chuva sobre a telha vã do telhado, saltava da cama, para passar água pela cara, fazer umas sopas de pão com açúcar, pegar nas duas bolsas que punha ao ombro, tipo alforge, e de chapéu aberto, aí pelas seis e meia, partia para Mação, pois a primeira aula começava às oito e meia. 

O meu avô, aproveitava para ir lá fora fazer a primeira necessidade e quase sempre me metia cinco escuditos na mão, com a recomendação: não gastes mal o pouco que temos; mesmo esse custa muito a juntar. 

E ao meu pedido da bênção, respondia, invariavelmente:

Vai com Deus e que Deus te abençoe. 

E recolhia-se para dentro de casa…talvez com uma lagrimazita no olho; eu tinha apenas acabado de fazer dez anos e ao nascer do sol, já estaria às vistas da Carregueira, ou do Penhascoso – com uma hora e meio de caminho andado.