terça-feira, 19 de junho de 2012

Os maquiadores



Quando a água minguava na ribeira do Verdigal, o Ti’Ricardo aproveitava o vento na portela da Calhameira e moía os cereais dos fregueses, durante todo o ano. 

Já o Ti’Tiauga, o outro moleiro da terra, não podia trabalhar a tempo inteiro, uma vez que a partir de meados da Primavera a água da ribeira mal chegava, como ele dizia, para as rãs e os sapos matarem a sede. 

O “faísca” e o “carocho” eram os burritos que serviam, respectivamente, havia muitos anos, o Ti’Ricardo e o Ti’Tiauga. Só na cor mais clara e na espinha já deformada pelas cargas de taleigos, se distinguia o que conhecia tão bem como o dono, o carreiro até à azenha do Verdigal e os caminhos da Serra, das Lercas e do moinho da Calhameira. 

Na idade, segundo as palavras do meu avô, quando o Tiauga for velho o cunhado Ricardo não há-de ser novo, uma vez que o foi tirar ao quartel de Abrantes, quando assentou praça. Parece que chegou a ser cabo, lá na Artilharia, onde tratava as bestas. 

Nos copos, se bem que não fossem homens de taberna, não enjeitavam o mata-bicho de algum freguês e não ficavam sem convidar quem os obsequiava. 

No Zé Maia, ou no Silvestre, eram muitas vezes acompanhados pelo Pimpão, o outro maquiador, como dizia, pois não faltava a uma safra nos lagares de azeite, onde era mestre. E, estando os três juntos, logo vinham as histórias. 

Nestes encontros, uma coisa os distinguia: O Ti’Ricardo era homem de poucas conversas e menos prosas; O Ti’Tiauga tinha sempre troco preparado para uma chalaça; o Pimpão atacava sempre que podia, ainda que tivesse idade para ser filho dos amigos moleiros. 

Davam-se muito bem uns com os outros: quando sobrava taleigos ao Ti’Tiauga, ia ter com o colega e dava-lhe o serviço. O Pimpão era sobrinho e freguês do Ti’Ricardo. 

O moinho da Calhameira, lá no cimo da Lameira Cimeira, estava ali no limite das terras de Penhascoso; era lá, segundo dizia o moleiro, quando os caixões rodavam meia volta, que os mortos se voltavam para o outeiro de S. José, onde haviam de ir morar para sempre, deixando a sua terra. 

Um dia, contava ele, seguia quase toda a aldeia a acompanhar um dos maiores forretas que se criaram na Queixoperra. 

Ao chegar junto do moinho, já a vistas para a do Isidoro, levantou-se tamanho pojino que pegou nas velas do moinho que rodava lentamente e parecia que ia tudo rebentar: as mós faiscavam uma na outra e só a poder de colher os panos e travar tudo o que pude, a coisa serenou. 

Diz quem viu que o caixão do morto estremeceu; a besta que puxava a carroça, eriçou-se toda e só depois do responso que as pessoas em boa hora rezaram, a coisa lá acalmou e o cortejo fúnebre pôde continuar viagem. 

No fim, entre estouros e rangidos, lembrei-me de rezar o Pai-nosso e, quando terminei e disse Ámen, veio uma calma tão grande que nem havia vento suficiente para rodar as velas. 

Fui à porta do moinho e vi, na portelita, um sujeito aos pinotes, rodeado de sombras que se estendiam pelos ares, e dança animada na poeirada. 

Fiz o sinal da cruz, encomendei o morto que já ia lá à frente, e quando reabri os olhos quase não me lembrava de nada. 

Quando acabou de ouvir a história, o Pimpão perguntou: 

Oh! Ti’Ricardo e o morto não seria algum moleiro? É que as contas dos moleiros são muito boas de fazer em vida, mas muito complicadas de acertar depois de mortos. 

Até se costuma dizer que uma das penas que recebem é andar com uma saca de milho às costas, a correr as casas dos fregueses e deixar uma mão cheia em cada casa, para desconto do que maquiaram a mais. 

Olha lá, oh! Pimpão, não estarás enganado quando te referes aos moleiros?!... 

É que sempre ouvi dizer que os mestres lagareiros, como tu, é que são condenados a encherem as lamparinas do Santíssimo, nas igrejas, com o azeite que maquiaram a mais, aos fregueses dos lagares onde trabalharam. 

E têm de percorrer pelo menos sete igrejas matrizes cada noite, até se acabar o azeite. 

E olha lá homem, os moleiros, se por vezes se podem enganar, é para eles; agora os mestres lagareiros, trabalham para os outros e daí que o Diabo se encarregue dessa gente estúpida que nem para si soube ser boa. 

Deite lá mais uns copos, Ti’Marília, que este diabo quer conversa!...

sábado, 9 de junho de 2012

O Albino da Ribeira



O Albino nasceu paredes-meias e com pequena diferença de tempo do burro “Mateus”, nos cómodos dos engenhos do avô, na ribeira de Eiras. 

Era noite de S. Mateus e seria esse, naturalmente, o nome do garoto; porém o seu aspecto esbranquiçado, os cabelos louros e os olhos azuis, viriam a influir na decisão do avô que lhe pôs o nome de Albino. 

Para o jumento, filho da velha “Ruça”, burra da casa havia mais de vinte anos, reservou o velho moleiro o nome de “Mateus”, com que, não sabemos porquê, não engraçava nada. 

A mãe do rapaz, última filha dos moleiros da ribeira, tomou barriga muito nova – ainda não completara dezassete anos –, segundo sempre disseram, de um malandro que por ali passou e desapareceu, para não mais voltar. 

O parto complicou-se e os cuidados e esforços da “comadre” Maria do Rosário foram insuficientes para salvar a Maria Rosa, ficando o filho aos cuidados dos avós. 

Na verdade, da avó, já que o avô passava a vida por fora, nas voltas pela freguesia, levando e trazendo os taleigos e dando movimento às tabernas por onde passava. 

Voltava, na maior parte dos dias, bem enfeitado, como dizia a “Tia Estrudes”, quando lhe sentia o bafo avinhado e o via a catrafiar, ziguezagueando, atrás da “Ruça”, que, no dizer da velhota, era bem mais finória que ele. 

Das azenhas às primeiras casas do povo era uma subida escorregadia e cheia de curvas, por entre pinhais e medronheiros. Mais ou menos quinze minutos, quer a subir, quer a descer. 

A marcha era regulada pela velha “Ruça”, a mãe do “Mateus”, que subia carregada de farinha e descia carregada de grão, sem alterar a passada, independentemente das cacheiradas do dono, ou da pressa de chegar ao palheiro, onde teria uma gavela de palha, um braçado de camisos de milho e um balde de água. No Verão, duas ou três mãos-cheias de milhã da horta. 

Desde pequeno, o Albino conviveu com os ratos e ratazanas que sempre pululam nos anexos das azenhas, onde dormia, num catre, ao lado dos avós; melhor dizendo, entre os avós e o burro “Mateus” que dividia o cortelho com a “Ruça”. 

Subiram muitas vezes a ladeira até à aldeia, atrás da jumenta, ajoujada sob a carga e com o pequenote, cabriolando pelos lados do caminho e, bastas vezes, parando de pular, agarrado às tetas da mãe para sugar o leite que encontrasse. 

Diga-se, em abono da verdade, que o Albino alternou, com o “Mateus”, nas tetas da “Ruça”. 

E que bem lhe sabia aquele leitinho, quentinho, ao natural, e ligeiramente ácido. Nunca mais esqueceu aquele sabor, segundo dizia!... 

Outro dos grandes amigos do Albino era o “Jagodes”, que lhe dormia aos pés e zelava para que os ratos não se aproximassem; gordos que nem texugos, como dizia o velho moleiro, se não fossem os três gatos, chefiados pelo “Jagodes”, os ratos até já o teriam comido, quando, a sono-solto, caía sobre o catre, encharcado pela pinga e exalando um cheiro que o denunciava a metros de distância. 

Nos fundos do cortelho, para lá das bestas, estava a cabra e a borrega, de lã mais negra que o carvão e coberta de surro viscoso; dizia dela o moleiro que nunca emprenhou, porque não havia carneiro que se lhe chegasse. 

A cabrita, sim; dava um ou dois chibitos por ano e era boa leiteira – havia sempre queijos para gastos de casa e nunca faltou leite para o Albino, que ora mamava nela, ora se satisfazia na “Ruça”, onde alternava com o “Mateus”. 

Não o ensinei a ler e escrever – também não sei e nem preciso –, mas é muito homem para se governar e safar-se das enrascadas que a vida nos prega. 

Não há bicho que lhe meta medo e convive com toda a Natureza; quer de noite, quer de dia, não há vivo que o apoquente. 

Sabe picar as pedras dos engenhos, maquia os taleigos a preceito, regula as águas nos rodízios, apalpa a farinha tão bem como eu, semeia e orienta a horta, onde há fartura de tudo em cada ocasião, caça e pesca mais que suficiente para toda a família e, maleitas a sério, nunca entraram com ele. 

Foi desta maneira que comentou a notícia do apuramento para o serviço militar: O meu neto é um homem como qualquer outro; bem dizendo, mais capaz que muitos. Porque havia de ficar livre? E, se querem saber, acho que lhe vai custar um bocadinho, sobretudo a aceitar a disciplina, mas vai fazer-lhe muito bem e, se Deus permitir, naqueles dois anos, vai fazer-se mais homem, tirar os exames, aprender um ofício e conhecer gente da alta. 

O Albino teve sempre botas deixadas pelos primos, mas pelava-se mesmo era para andar descalço; era vê-lo na ribeira, saltando de pedra em pedra, nadando como um peixe, pescando à mão e extasiando-se com o sol, qual roupa a corar. 

Subia às árvores com a destreza dum trepador e, no tempo dos ninhos, empanturrava-se de ovos de melro e de outros pássaros mais pequenos. 

O principal contratempo quando se apresentou, em Abrantes, no quartel da tropa, era o calçado que não se lhe ajeitava aos pés. Pediu botas grandes e sentia-se todo orgulhoso com a farda que lhe distribuíram. 

Não acertaram os que pensavam que iria haver problemas de higiene, disciplina, sociabilidade: era arguto e perspicaz, bastava-lhe ouvir as coisas uma vez, foi o primeiro a montar e desmontar as armas da instrução, no manejo de arma e na ordem unida era dos mais acertados. 

Fazia com gosto e aprumo os exercícios físicos da instrução, era perfeito nos trabalhos de faxina e, no dizer do instrutor, se soubesse umas letras, tê-lo-ia escolhido para cabo. 

Acabou por ficar soldado raso, mas muito distante dos básicos que por lá abundavam. 

Inscreveu-se na educação de adultos e, nos dois anos fez o primeiro e o segundo grau. 

Foi ajudante de quarteleiro, até ser escolhido por um capitão para seu impedido e, de tal forma desempenhou o serviço a mando do “patrão”, que mereceu, no final, um louvor e uma carta de recomendação para qualquer serviço que exigisse empenho, habilidade manual, honestidade e disponibilidade total. 

Esta carta acompanhou sempre o Albino que a exibia, orgulhosamente, pela vida fora. 

O mundo dá muitas voltas e, bastantes anos mais tarde, encontramos o Albino, nas feiras e mercados das redondezas, sempre perto das tabernas e, normalmente, perdido de bêbedo, ou acabando a noite numa qualquer lapa da serra dos Bandos, farejado pelos lobos – que nunca se atreveram a tocar-lhe –, ou aparecendo em casa, tarde e a más horas, para ir visitar os fregueses. 

Deixava muitas vezes a mulher e os quatro filhos, entregues aos trabalhos dos engenhos e subia pelas serras, antes do romper da madrugada, para ver nascer o sol, sobre as serras do Carvoeiro e Envendos, observar a passarada e outros animais que acordava, a miúdo, com os seus assobios, chamando os cães que andavam em trabalho de sustento e, não raro, lhe traziam lebres ou coelhos, surpreendidos na cama. 

Passava noites palmilhando montes e vales, mesmo perfeitamente sóbrio. 

Sempre que se encontrava com alguém, combinava: antes do nascer do sol. E nunca se atrasava. 

Já pelo cair da noite não tinha grande apreço; das inúmeras vezes que pernoitou ao Deus dará, não estava, por certo, sóbrio. 

Das suas andanças guardou memória de inúmeros encontros: uns reais, com pessoas noctívagas como ele, com animais de pequeno e grande porte, desconhecidos da maioria das pessoas e a quem eram atribuídas qualidades irreais e fantasiosas; outros fantasmagóricos, dando azo a uma imaginação prodigiosa. 

Falava de coisas que ninguém conhecia; e, pelos vistos, nem ele. 

Quando lhe puxavam pela língua, nas tabernas de Mação, abertas até mais tarde, ou de outras terras que cruzava nas suas deambulações, nunca mais acabava de relatar cenas, umas absolutamente arrepiantes e outras revestidas de tal ingenuidade que acabavam por dar que pensar. 

Foi assim que, numa tarde, de um dia de feira dos Santos, na taberna do Armelim, frente à igreja da Misericórdia, o Albino começou a contar: 

…Um belo dia, passava da meia-noite, reuniram-se, no cimo dos Brejos, os representantes dos lobos do nosso concelho e dos vizinhos. O chefe era um velho, conhecido de todos, que já por diversas vezes tinha sido ferido pelos zagalotes dos caçadores, mas sempre se tinha safado. 

Eu conheço bem muitos desses amigos, sobretudo aqui os dos Bandos e sem me esconder pude, durante várias horas ouvir todos os planos para ataque a rebanhos, os planos de vigilância de caçadores e batidas organizadas e ajuda a irmãos feridos. E olhem que gostei de ouvir!... 

Bem não vou entrar em mais pormenores porque nunca vou trair os que em mim confiam e quero ser sempre amigos dos lobos que, segundo tenho visto, são mais fixes que a maioria dos homens que não se entendem e puxam cada um para seu lado. 

Lembram-se do Senhor Doutor Samuel? 

Podem crer que foi muitas vezes escoltado por lobos amigos e só morreu porque os seus amigos não tiveram meios para salvá-lo quanto o encontraram caído do cavalo. 

Depois, como que ausente, repetia, até se cansar: 

Só morrem os bons! Só morrem os bons! Só morrem os bons! Só morrem os bons! Só morrem os bons! ………