Ainda hoje, os mais antigos dizem "Três de paus", quando se referem à nossa terra e ao nome que quiseram, um dia, pôr-lhe, mas acabou por não vingar, sendo vencidos os que votaram Três moinhos, e vencedores os que disseram o nome actual de Serra.
Assim ouvi contar ao Ti'Tonho Lindo que todas as tardes vinha despertar da sesta no poial junta da casa de meus avós, no Casal, ali quase em frente da porta da igreja e a uns trinta metros da casa dele.
Posto o caso ao meu avô, acabei por ficar convencido que aquilo não passava de mais uma das histórias inventadas por alguém que não tinha mais que fazer e passava parte da vida a trazer mais que levava, sem ter o mínimo cuidado de averiguar, uma pontinha que fosse, sobre a verdade do que dizia.
Chega aí, encostado ao pauzito que nunca larga e, depois de dar a salvação, senta-se.
Despeja o saco, dando as últimas da terra e de fora, entremeando as novidades com a imaginação. Depois levanta-se, e com o habitual "fiquem-se com Deus", lá vai, carreiro da vinha abaixo, até à casa do filho Augusto, lá na Figueira Regal, onde volta a sentar-se, no poial ao lado da porta virada para a ladeira do Pichelim. Dali parte para a horta do Casalinho.
Um vale de cães, naquela barreira da encosta do Cabeço Pião, quase no Chão de Burro, lá junto do pinhal. Uma solina onde, no Verão, só verdeja alguma coisa a poder da água da mina, pois, a toda a roda pouco mais se vê que restolhos.
Como não tem nada para a ribeira, acabou agarrado ali, onde com a água da mina, vai tendo uns mimos para ele e os filhos que não ligam às terras, fazendo as suas vidas por fora; um, nos negócios da resina, algures para os lados de Domingos da Vinha e o outro, na compra de madeiras para a firma do meu velho amigo Aparício, de Alferrarede.
Na meia hora entre a Figueira Regal e a horta do Casalinho, parará sempre que encontrar alguém, que lhe dê conversa.
Chegado à horta, senta-se à sombra de uma oliveira e vai olhando para as duas cabritas e a ovelha que a mulher para lá leva todos os dias e prende, no pequeno baldio, onde vão comendo o pouco que apanham.
Entretanto a Ti'Carolina rega a água da mina, colhe umas folhas de couve, ou outras hortaliças e, no final da tarde, voltam os dois para casa, aqui no Casal, depois de passar por casa do Augusto, lá na Figueira Regal.
Isto repete-se todos os dias em que o tempo o permite; nunca foi homem para grandes trabalhos.
Em novo teve uns pequenos negócios, mas nunca se lhe viu grande luzimento no que conseguiu arranjar. Já para "vender landum", como diz o teu pai, está ali para as curvas. Pela língua, ninguém o prende e “coisa que se lhe segrede, não passa do distrito", dizia, igualmente, o meu pai.
Se alguém quiser que qualquer coisa se saiba em todo o povo, é dizê-la, ainda que em segredo, ao Ti'Tonho Lindo.
Mas a garotada gostava de ouvi-lo e fazer-lhe perguntas. Era, ao tempo, dos homens mais velhos da terra e o meu avô acrescentava que sempre o conheceu velho e, de certeza, também cansado. Quando nos via à volta dele, aproximava-se e depois de tomar nota das conversas, saía, quase sempre, a rir.
Voltemos, então, ao nome da nossa Terra:
Segundo o Ti'Tonho Lindo, houve, em tempos onde só a memória de várias gerações poderia chegar, três moinhos de vento, cá na Serra. Um na Rompida, além sobre o nascente, que ainda se conserva a trabalhar; outro no outeiro que sempre foi conhecido pelo moinho, ali sobre o meio-dia, para lá da Chã; e um terceiro, pelo norte, além no cimo da serra, na Maxieira, onde não há vestígios, nem sinais de qualquer moinho, a não ser o nome daquele local.
Vistos dos baixos do Cabeço Barreiro, junto à Portela da Casinha, a possível localização dos três moinhos, faz lembrar uma flor com três pétalas, semelhantes ao sinal do naipe de "paus", das cartas de jogar. Foi esta ideia que esteve na origem do nome que quiseram pôr a esta nossa terra, antes de se chamar Serra.
Diz-se até, fazendo fé nas palavras do Ti'Tonho Lindo, que um dos moleiros era agigantado; o do moinho sobre o outeiro para lá da Chã. E que juntava ao avantajado corpo um génio terrível, pelo que ninguém se queria meter com ele e, muito menos opor-se-lhe.
Da sua folha de serviço constavam diversas mortes e desaparecimentos, relatam as lendas à volta do nome deste lendário moleiro. Também o fim dele está envolto em misteriosa e incerta causa.
Conta-se, como na generalidade das histórias e lendas, que quatro cavaleiros daqueles que pertencem lá ao convento de Cristo, passaram, cá na Serra, a caminho de Belver, e decidiram subir até junto do moinho para observar toda a zona a nascente, para onde pensavam dirigir-se.
Como não encontraram ninguém, foram entrando e verificaram que o moinho estava a trabalhar.
Chamaram pelo moleiro, deram uma vista pelas cercanias do moinho e ao ver tão grande armazém de pão, resultante das maquias, resolveram esperar pelo moleiro para o intimarem a entregar metade para a Ordem.
Surgindo como que do nada, o moleiro não deu parte de fraco e convidou dois dos cavaleiros a pernoitar no moinho, dizendo que os outros podiam seguir viagem e passar pelos outros moinhos para também lá cobrarem a dízima.
Os cavaleiros aceitaram e combinaram que, no dia seguinte se encontrariam no centro da aldeia, ainda antes de nascer o sol, debaixo do plátano, mesmo em frente da porta da capela.
Entretanto os dois que ficaram lá no moinho, viram, de repente, aparecer uma figura desconforme, com braços maiores que os de qualquer ser humano, completamente coberto de pelos e movimentando-se como um macaco enorme.
Pouco depois fechou-se a porta do moinho, com um grande estrondo, desapareceu a claridade e as pedras começaram a girar com tal velocidade que ao roçarem uma na outra faiscavam por todo o moinho.
Sem que ninguém da aldeia desse por nada durante a noite, ao romper da manhã foram vistos pelo moleiro do moinho detrás da Chã, dois cavaleiros pendurados no plátano do largo da igreja e os seus cavalos comendo, vagarosamente uns molhos de feno junto ao tronco da árvore.
O velhote gritou por socorro, juntou-se gente e logo ali começou a correr a versão de que os quatro cavaleiros se tinham envolvido numa luta e dois mataram os colegas e penduraram-nos na árvore.
Acabaram todos a olhar uns para os outros, esperando que fossem encontrados os outros dois cavaleiros que ninguém afirmava ter visto, depois de verem na tarde do dia anterior um grupo de quatro a subir para o moinho.
O moleiro afirmava que no dia antes tinha estado todo o dia no moinho e atendera dois cavaleiros que lhe disseram que vinham cobrar a dízima e passariam no dia seguinte, pois ainda tinham de ir aos outros dois moinhos. E seguiram caminho, ficando o moleiro a trabalhar, normalmente.
Quando saiu, de manhã cedo, para ir fazer a volta da Aboboreira, passou ali e viu aquela cena. Ainda tinha o burrito carregado de taleigos.
Acabaram por vir os cavaleiros que tinham ido aos outros moinhos e tinham ficado a dormir num barracão perto da Rompida. Ao depararem-se com os colegas pendurados no plátano aceitaram que se teriam desentendido e um deles, depois de matar o colega resolveu pôr fim à vida.
Recomendaram que fossem enterrados, levaram os cavalos e desapareceram sem deixar rasto, nem levarem qualquer saco de grão ou farinha dos dízimos por que pareciam ter vindo.
Todos falaram nas artes do moleiro.
Nunca ninguém lhe referiu o nome nem fez qualquer referência a família.
O certo é que nunca ninguém quis morar lá naquele lugar.