quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Chuva de prata



Toda a garotada da aldeia gostava de ouvir as histórias do velho Vicente Pisco, que morava num casebre, ao fundo da cabana onde o Ti’ Zé Coroado fazia cestos de verga. 

Na nossa linguagem não havia números para dizer a idade do velhote; era velho e mais nada.

Naquele ano, à volta de mil novecentos e cinquenta, não havia escola no Posto da Serra e a garotada distribuiu-se pelas aldeias mais próximas; eu tinha a sorte de ter avós na Queixoperra e fui para lá, fazer a segunda classe. 

Pouco mais me lembro, para além de que aquele ano foi muito bonito: gostei muito da Professora, dos colegas e, sobretudo, de ver muitas coisas que não havia na minha terra. 

Havia muitas peras, muitas casas com juntas de bois, muitos caçadores e duas coisas que, de tal modo me cativaram as papilas gustativas, que ainda consigo lembrar-lhes o sabor, na íntegra: os queijos da minha avó e as passas de figos brancos, da figueira da Amarela. 

No Pito Cerro tínhamos laranjas muito doces, na horta do Ribeiro, cenouras – coisa que na Serra nunca tinha visto –, na Matagosa, água muito fresquinha e no Ougueiro, ao fundo do Pito de Horta, alhos, cebolas e alfaces e uma nora. 

Uma coisa me incomodava: dado o elevado número de caçadores, havia muitos cães e eu tinha medo deles. 

Era um consolo subir e descer a azinhaga da Bica, quando ia a recados à loja do Ti’Zé Maia, ou do Ti’Silvestre: subia e descia sem encontrar um único cão. 

Morava no casal, junto das casas da gente mais velha da terra e, da varandita do meu avô, via entrar e sair o Ti’Vicente Pisco. 

Diga-se que Vicente era um nome vulgar na Queixoperra e não havia nenhum na Serra. 

Aqui está mais uma novidade, para mim, entre muitas outras que me enriquecerem, de tal modo, que ainda hoje guardo um carinho especial pelos usos e costumes da terra e pelas suas gentes. 

Ouvi, com outros miúdos, muitas histórias do velhote. Retenho-as, na sua grande maioria, na memória. Há, porém, uma que várias vezes se adianta e sobrepõe às outras: a do dia da chuva de prata. 

Contava, sentado no degrau da sua porta, o Ti’Vicente Pisco: 

Há dias para tudo; uns melhores, outros piores e muitos, nem bons nem maus. 

Há dias que só vêm uma vez: só temos um dia para nascer e só outro para morrer. 

Um dos meus segredos é saber quais são esses dias: para nascer é o primeiro e para morrer é o último, da vida de cada um. 

E olhem que já tem vindo aqui à minha porta o dia de morrer, mas eu, nesse dia, vou-me embora para longe, para as Fontainhas, ou para a Lameira Cimeira. É por isso que sou o mais velho da aldeia. 

Há dias que nos ficam na lembrança e outros que teimam em não nos sair dela, embora gostássemos de os esquecer. Há dias bons e dias maus – vocês conhecem o Ti’Manel Dias, das Barreirinhas? E que vos parece? 

É claro, é mau. Assobia aos cães quando vocês lhe passam à porta!... 

Nós, lá íamos abanando a cabeça, até que o João do Ribeiro, ou o Heitor – outro nome que também não havia na Serra –, lançavam o desafio: Oh Ti’Vicente, e é verdade que há um dia que chove prata?!... 

Completamente verdade. 

Foi-me dito pelo meu avô e olhem que era homem que nunca mentia!... Ele andou toda a vida para encontrar esse dia e, se calhar, foi numa altura em que tinha ido a alguma feira, ou quando andou na tropa. Acabou por não o descobrir. 

Eu, aqui há uns anos, acordei com o chão coberto de branco. Vesti as calças, a correr, e fui à tapada para apanhar a prata, mas ainda não era o dia de chover prata; era, apenas, uma das poucas vezes que caiu neve cá na nossa terra. 

Palavra de Vicente Pisco: podem estar descansados que quando estiver para chegar o dia da chuva de prata, mando avisar todos – não quero que ninguém fique sem poder guardar um bem tão raro. 

Olhámos uns para os outros, muito crédulos, e fomos embora!...

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Três moinhos




Ainda hoje, os mais antigos dizem "Três de paus", quando se referem à nossa terra e ao nome que quiseram, um dia, pôr-lhe, mas acabou por não vingar, sendo vencidos os que votaram Três moinhos, e vencedores os que disseram o nome actual de Serra. 

Assim ouvi contar ao Ti'Tonho Lindo que todas as tardes vinha despertar da sesta no poial junta da casa de meus avós, no Casal, ali quase em frente da porta da igreja e a uns trinta metros da casa dele. 

Posto o caso ao meu avô, acabei por ficar convencido que aquilo não passava de mais uma das histórias inventadas por alguém que não tinha mais que fazer e passava parte da vida a trazer mais que levava, sem ter o mínimo cuidado de averiguar, uma pontinha que fosse, sobre a verdade do que dizia. 

Chega aí, encostado ao pauzito que nunca larga e, depois de dar a salvação, senta-se. 

Despeja o saco, dando as últimas da terra e de fora, entremeando as novidades com a imaginação. Depois levanta-se, e com o habitual "fiquem-se com Deus", lá vai, carreiro da vinha abaixo, até à casa do filho Augusto, lá na Figueira Regal, onde volta a sentar-se, no poial ao lado da porta virada para a ladeira do Pichelim. Dali parte para a horta do Casalinho. 

Um vale de cães, naquela barreira da encosta do Cabeço Pião, quase no Chão de Burro, lá junto do pinhal. Uma solina onde, no Verão, só verdeja alguma coisa a poder da água da mina, pois, a toda a roda pouco mais se vê que restolhos. 

Como não tem nada para a ribeira, acabou agarrado ali, onde com a água da mina, vai tendo uns mimos para ele e os filhos que não ligam às terras, fazendo as suas vidas por fora; um, nos negócios da resina, algures para os lados de Domingos da Vinha e o outro, na compra de madeiras para a firma do meu velho amigo Aparício, de Alferrarede. 

Na meia hora entre a Figueira Regal e a horta do Casalinho, parará sempre que encontrar alguém, que lhe dê conversa. 

Chegado à horta, senta-se à sombra de uma oliveira e vai olhando para as duas cabritas e a ovelha que a mulher para lá leva todos os dias e prende, no pequeno baldio, onde vão comendo o pouco que apanham. 

Entretanto a Ti'Carolina rega a água da mina, colhe umas folhas de couve, ou outras hortaliças e, no final da tarde, voltam os dois para casa, aqui no Casal, depois de passar por casa do Augusto, lá na Figueira Regal. 

Isto repete-se todos os dias em que o tempo o permite; nunca foi homem para grandes trabalhos. 

Em novo teve uns pequenos negócios, mas nunca se lhe viu grande luzimento no que conseguiu arranjar. Já para "vender landum", como diz o teu pai, está ali para as curvas. Pela língua, ninguém o prende e “coisa que se lhe segrede, não passa do distrito", dizia, igualmente, o meu pai. 

Se alguém quiser que qualquer coisa se saiba em todo o povo, é dizê-la, ainda que em segredo, ao Ti'Tonho Lindo. 

Mas a garotada gostava de ouvi-lo e fazer-lhe perguntas. Era, ao tempo, dos homens mais velhos da terra e o meu avô acrescentava que sempre o conheceu velho e, de certeza, também cansado. Quando nos via à volta dele, aproximava-se e depois de tomar nota das conversas, saía, quase sempre, a rir. 

Voltemos, então, ao nome da nossa Terra: 

Segundo o Ti'Tonho Lindo, houve, em tempos onde só a memória de várias gerações poderia chegar, três moinhos de vento, cá na Serra. Um na Rompida, além sobre o nascente, que ainda se conserva a trabalhar; outro no outeiro que sempre foi conhecido pelo moinho, ali sobre o meio-dia, para lá da Chã; e um terceiro, pelo norte, além no cimo da serra, na Maxieira, onde não há vestígios, nem sinais de qualquer moinho, a não ser o nome daquele local. 

Vistos dos baixos do Cabeço Barreiro, junto à Portela da Casinha, a possível localização dos três moinhos, faz lembrar uma flor com três pétalas, semelhantes ao sinal do naipe de "paus", das cartas de jogar. Foi esta ideia que esteve na origem do nome que quiseram pôr a esta nossa terra, antes de se chamar Serra. 

Diz-se até, fazendo fé nas palavras do Ti'Tonho Lindo, que um dos moleiros era agigantado; o do moinho sobre o outeiro para lá da Chã. E que juntava ao avantajado corpo um génio terrível, pelo que ninguém se queria meter com ele e, muito menos opor-se-lhe. 

Da sua folha de serviço constavam diversas mortes e desaparecimentos, relatam as lendas à volta do nome deste lendário moleiro. Também o fim dele está envolto em misteriosa e incerta causa. 

Conta-se, como na generalidade das histórias e lendas, que quatro cavaleiros daqueles que pertencem lá ao convento de Cristo, passaram, cá na Serra, a caminho de Belver, e decidiram subir até junto do moinho para observar toda a zona a nascente, para onde pensavam dirigir-se. 

Como não encontraram ninguém, foram entrando e verificaram que o moinho estava a trabalhar. 

Chamaram pelo moleiro, deram uma vista pelas cercanias do moinho e ao ver tão grande armazém de pão, resultante das maquias, resolveram esperar pelo moleiro para o intimarem a entregar metade para a Ordem. 

Surgindo como que do nada, o moleiro não deu parte de fraco e convidou dois dos cavaleiros a pernoitar no moinho, dizendo que os outros podiam seguir viagem e passar pelos outros moinhos para também lá cobrarem a dízima. 

Os cavaleiros aceitaram e combinaram que, no dia seguinte se encontrariam no centro da aldeia, ainda antes de nascer o sol, debaixo do plátano, mesmo em frente da porta da capela. 

Entretanto os dois que ficaram lá no moinho, viram, de repente, aparecer uma figura desconforme, com braços maiores que os de qualquer ser humano, completamente coberto de pelos e movimentando-se como um macaco enorme. 

Pouco depois fechou-se a porta do moinho, com um grande estrondo, desapareceu a claridade e as pedras começaram a girar com tal velocidade que ao roçarem uma na outra faiscavam por todo o moinho. 

Sem que ninguém da aldeia desse por nada durante a noite, ao romper da manhã foram vistos pelo moleiro do moinho detrás da Chã, dois cavaleiros pendurados no plátano do largo da igreja e os seus cavalos comendo, vagarosamente uns molhos de feno junto ao tronco da árvore. 

O velhote gritou por socorro, juntou-se gente e logo ali começou a correr a versão de que os quatro cavaleiros se tinham envolvido numa luta e dois mataram os colegas e penduraram-nos na árvore. 

Acabaram todos a olhar uns para os outros, esperando que fossem encontrados os outros dois cavaleiros que ninguém afirmava ter visto, depois de verem na tarde do dia anterior um grupo de quatro a subir para o moinho. 

O moleiro afirmava que no dia antes tinha estado todo o dia no moinho e atendera dois cavaleiros que lhe disseram que vinham cobrar a dízima e passariam no dia seguinte, pois ainda tinham de ir aos outros dois moinhos. E seguiram caminho, ficando o moleiro a trabalhar, normalmente. 

Quando saiu, de manhã cedo, para ir fazer a volta da Aboboreira, passou ali e viu aquela cena. Ainda tinha o burrito carregado de taleigos. 

Acabaram por vir os cavaleiros que tinham ido aos outros moinhos e tinham ficado a dormir num barracão perto da Rompida. Ao depararem-se com os colegas pendurados no plátano aceitaram que se teriam desentendido e um deles, depois de matar o colega resolveu pôr fim à vida. 

Recomendaram que fossem enterrados, levaram os cavalos e desapareceram sem deixar rasto, nem levarem qualquer saco de grão ou farinha dos dízimos por que pareciam ter vindo. 

Todos falaram nas artes do moleiro. 

Nunca ninguém lhe referiu o nome nem fez qualquer referência a família. 

O certo é que nunca ninguém quis morar lá naquele lugar.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Duas vidas



Pouco mais de cinquenta metros, depois de atravessar a ponte da Ribeira, deixava-se o caminho, de carro, do Sanguinhal e mal se entrava no carreiro do lagar, descia-se uns dois ou três metros e, com todo o cuidado, a escada até à levada que ligava o açude, ao Sanguinhal do Lagar e, também atravessava a ribeira, aproveitando um tapume antigo, para apanhar a levada que seguiria, margem esquerda abaixo, até à Cabeça Gorda e à Caldeirinha. 

Tinha muitos meeiros aquele açude da ribeira, que, noutros tempos, em alturas de não regas e caudal mais abundante, movimentava o lagar de azeitona, ao tempo, em ruínas e, assim, condenando a Serra a não mais ter outro lagar, durante várias décadas. E, quando veio um novo engenho, a força da água da ribeira foi trocada pela de um potente motor de explosão. 

O açude era montado e melhorado todos os verões e uma das tarefas era a caça às irós, a fim de diminuir, ao mínimo possível, os danos que elas causavam na represa. 

Era um local especial para a fauna aquática, uma vez que, quando cheia, a foz da represa dava até aos lavadouros da ponte, onde não se acabavam as lavadeiras e a dispersão de restos de comida e dos detritos das lavagens.

Tempos em que não havia detergentes e, pelos vistos o sabão azul da barrela não atacava os peixes; antes os atraía e engordava. 

Na primeira hortita, logo à entrada do bueiro que abre para a levada da margem direita, os mimos do Ti’Manel Rosa mal conseguiam erguer a cabeça debaixo do pessegueiro de pêssegos amarelos, assoberbado por uma latada que se estendia até sobre a nossa figueira, situada mesmo junto da estrema das duas leiras. 

Quer uma quer outra das árvores traziam as raízes nas águas da ribeira; de lá subiam as balças e a vegetação dos freixos e trepadeiras, procurando mostrar-se, por cima daquele tecto de verdura, à luz e calor do sol. 

Afinal a vida nascia de baixo e de cima: da água e do sol. As hortas, naquele recanto de frescura, estavam, pois, entre as duas vidas. 

No espaço entre o pessegueiro e as videiras que vinham da horta do Ti’Manel Rosa e a nossa figueira de belos figos pretos, abeberados, de capa rota e bojo úbere, não havia qualquer cana de milho; estava, invariavelmente, dum e outro lado da estrema, povoado de couves-galegas, que, embora com falta de luz do sol, cresciam muito mimosas e tenras. 

Havia, por ali, sinais de coelhos que, depois de saciados com a verdura apetitosa, aproveitavam o local para fazer ali o touril. 

O local tinha duas finalidades, durante os meus tempos de férias: espaço de leitura, e lugar de descanso, nas manhãs de Agosto, quando tinha a redondeza pejada de costelas, armadas aos taralhões. Comi ali muitos figos, pêssegos e cachos de uma videirita do nosso lado, salvo erro, da casta “fernão pires”. 

Um conjunto de três pedras, colocadas, discretamente, pelo meu pai, e dispostas de tal forma que muito se assemelhavam a um sofá, dava mais comodidade que qualquer outro lugar na nossa casa. 

Um forro de junco fresco, cortado na ribeira, dois metros mais abaixo, e ali estava um verdadeiro trono, digno de reis e príncipes que, às vezes, para ali eram trazidos pelos enredos dos livros que ia lendo. 

Sentado, virado à ribeira, não via nem era visto por quem passava no caminho. Via, no entanto, alguns metros de levada na margem esquerda e o leito da ribeira, formado por uma mistura de tufos de junco, pedras branquinhas e água a correr, de gola em gola, sussurrando músicas tão do agrado de cardumes de peixes minúsculos que povoavam as poças da ribeira. Na força do calor, viam-se mais pedras bulideiras, polidas pelas águas de inverno, que charcas de águas quase paradas. 

Também, como sempre foi tão ao meu gosto, devo ter ali passado horas esquecidas, a pensar. Recordei muitas vezes aquele local, quando me diziam se não queria reflectir um pouco mais, ao tomar decisões que poderiam parecer precipitadas, mas eram, de facto, resultantes de muita análise e ponderação. 

Sempre fui homem de grande actividade intelectual; parecendo distraído, raramente desligo a máquina. Naquele tempo arquitectava os caminhos da vida. Muito diferente, isso era ponto assente e seguro, da que desfrutava ali, no paraíso. 

Teria de me convencer que lá longe, não sabia ainda onde, outros mundos me desafiavam e era preciso que aproveitasse, ao máximo, os gastos com os estudos, desenvolvendo as capacidades que sentia dentro de mim e continuando sempre, na liderança, ou próximo dela, em todas as situações que a vida me abrisse. 

Sempre pela escada ascendente, deixando a descendente para os abúlicos, os fracos e os incapazes. Sempre na luta leal, nunca baixando os braços. Sempre subindo. 

Então era o estudo; havia que estar sempre no topo. O segredo era, tão só, nunca perder o tino, nunca levantar os pés do chão e ler muito, quer daquilo a que fosse obrigado pelos deveres diários, quer daquilo que pudesse complementar o que se ia, obrigatoriamente, aprendendo; isso passou a ser secundário para os meus objectivos. E os caminhos nunca se me fecharam. 

A definição da vida sentimental pôs-se algum tempo mais tarde. Anos depois e já pelos meandros da vida, com um rumo definido mas ainda incerto, intrigado e sem perceber bem porquê, fiquei com a sensação, na última vez que a vi, que tinha chegado a hora. Havia que assegurar que o objectivo traçado era exequível. 

Porém, não por ali, mas perto do Lis, o convite para um encontro na semana seguinte não podia ser aceite e, depois a retoma do trabalho e a ida para férias, eram factores de desencontro. 

Depois do interregno não podiam voltar as dúvidas e um novo arrefecimento ou novas negas, que eu nunca aceitei como autênticas, podiam por fim aos meus projectos. 

Analisava a minha paciência, caldeada de teimosia, e assente em muita segurança e sorria. Nunca desisti do objectivo final; a força do que tinha que ser foi, afinal, mais forte. Estava por ali o que procurava e segui nas rotas do caminho que defini. 

Anos e anos, a fio, umas vezes mais excitado, outras mais calmo e sereno, nunca fui homem de abandonar o caminho, depois de meditado, ponderado e decidido. Acaba-se, com o tempo, por chegar a duvidar se algo já começou, ou se qualquer coisa irá começar. Porém não faz parte do meu feitio, nem parece enquadrar-se comigo, a desistência e o abandono do rumo traçado e da luta pelos objectivos. 

O tempo, não sendo nada de concreto, pois, na realidade, nem existe mais que o presente: a cada momento, o passado já lá vai e o futuro acaba de chegar. Porém é um grande mestre e, naquelas calmas e cálidas manhãs, ensinou-me a aprender a esperar, não agarrado ao pasado, mas aproveitando o presente para ver o futuro. 

Sabia o que queria e na altura própria veio a recompensa. Tão simples como a confirmação de que afinal podíamos continuar os nossos projectos e era por ali que deveríamos ir. Era a estrada por onde duas vidas seguiriam, lado a lado. 

Num livro de Aristóteles acabei por perceber e, sobretudo interiorizar, que há muito de verdade quando se diz que a água só passa uma vez por baixo da mesma ponte. 

Associei outros dizeres de gente mais simples e, por isso, mais do meu agrado, como aquele em que o poeta Aleixo glosa o vinho que vai para vinagre sem retroceder o caminho. A conclusão de que, só por obra de milagre pode voltar a ser vinho, diz-nos, afinal, que não esperemos milagres, prevenindo-nos para que o vinho não chegue a ser vinagre. 

Esses pensamentos iam todos ter ao mesmo fim; caminho traçado e assumido é caminho seguido. E, no auge de mais um fim de serão, antes de apagar a luz, tudo se resumia à determinação e confiança que a Psicologia me ensinara: os complexos não servem para nada; a sublimação dos mesmos, pode e é, por norma, motor de força e factor de segurança, quer sejam eles, em génese, de inferioridade ou de superioridade. Acabam por caldear a força que nos move e impulsiona. 

O peso e vazio do escuro, que tão bem simbolizavam o nada, ajudaram-me a adormecer, sem perceber o que teria ganho ou perdido e, em tese, se alguma coisa haveria para ganhar, ou perder. A solução era continuar. 

Na próxima vez que nos vimos, esquecidos do vazio atravessado, rapidamente descobrimos o rumo a dois e desde então temos seguido o nosso caminho. 

Valeu a pena a definição caldeada naquelas calmas manhãs de Agosto. De objectivo em objectivo, sempre a pulso e sem afrouxar a corda tudo tem corrido bem e num balanço simples apenas ressalta uma conclusão: 

As duas vidas que num dia longínquo, e como que por acaso, se encontraram e pareciam paralelas, afinal não o eram. Desde cedo se foram aproximando e a convergência inevitável acabou por vencer. 

Valeu e continua a valer a pena.