sexta-feira, 23 de abril de 2010

O escritor

O António é barra na redacção e conto ou décima que ouça não mais se lhe passa da memória.

Todavia aprendeu a ler com alguma dificuldade e quanto a contas e problemas, estamos falados: é o cabo dos trabalhos. Desenha com bastante dificuldade, na História e na Geografia, vai indo.

Estou em crer que mais um anito de escola não havia de lhe fazer mal nenhum. Assim, como assim, não tem grande corpo, é novo e tem muito tempo de ir aprender o ofício com o pai.

Foi com estas palavras que, por alturas da Páscoa, a senhora Professora fez o ponto da situação à mãe do Tonho dos Gatos, filho do caldeireiro da terra e, na boca da mãe, Ti’Engrácia, a mais fina das criaturas que Deus ao Mundo deitou e, sem sombra de dúvidas, o mais esperto dos alunos da escola.

Chegou a casa pior que uma fera: Então não queres lá ver, homem!? Disse-me que o nosso moço é fino, que escreve que nem um artista, mas que acha que ele deve fazer mais um ano de escola. Isso é que era bom! Pois se é dos melhores que vá a exame e logo se verá! Se calhar não lhe leva tanto como os outros; nem todos podem ser ricos e ter mimos para a paparicar a toda a hora.

O caldeireiro Eduardo, homem comedido e sensato, abanou a cabeça e não dando muita importância ao caso, desviou a conversa para assuntos do trabalho, dizendo que havia ali obra para entregar, pronta desde o princípio da semana e era melhor que ela fosse fazer isso. Ou não lhe fazia falta o dinheiro dos trabalhos? Quanto ao Tónio e à Professora, deixa por minha conta que eu trato de tudo; para a semana vou lá falar com a dona Elvira; não é assim que se chama a Professora? Veremos o que é melhor para o rapaz!

Pois é homem, já estou mesmo a ver!... Todos de enfiam o carapuço!... Acreditas em toda a gente!... Estou mesmo a ver que ainda o cachopo há-de querer ir assentar praça e não ter feito o exame. Então se todos os outros estão capazes par ir a exame, porque diabo não há-de estar o nosso? Então ele é menos que os outros, ou quê? Podes ir lá falar com a Professora, mas vê se não te deixas enrolar, como é teu costume!

O caldeireiro encolheu os ombros, sentou-se junto da mesa onde tinha os trabalhos, puxou o maço de “Provisórios”do bolso pequeno da jaqueta, acendeu um cigarro e recomeçou a trabalhar.

Mas, num salto o caldeireiro, voltou-se para a mulher, abriu-lhe muito os olhos e gritou-lhe: Querem lá ver o raio da mulher!? Não sabe dizer duas coisas, é burra todos os dias e parece que agora é ela que veste calças, cá em casa! Cala-te minha estúpida, pois se calhar nem percebeste direito o que a Senhora Professora te disse. Achas que ela tem algum interesse em não passar os alunos? Achas que qualquer artista tem algum gozo em não ver bem compensado e pago o seu trabalho? Cala-te que eu lá irei tratar do caso.

Passados dias, já depois das férias da Páscoa, o caldeireiro foi um dia lá à Horta Velha, a casa da Senhora Professora e pediu à rapariga que anunciasse o pai do António Pires que gostaria de ter uma conversa, com a Senhora, sobre o menino. Se achasse que ele devia ir à escola, que fizesse o favor de dizer.

Convidado a entrar, descobriu-se e sentou-se à mesa onde já estava a Professora, que, logo lhe perguntou se se passava alguma coisa com o menino, pois, nesse dia não tinha ido à escola e todos disseram que não o tinham visto.

Não minha senhora, o meu filho está bem e só faltou à escola porque a mãe foi comprar-me uns materiais para a arte e ele acompanhou-a. Que nos desculpe, pois devíamos tê-la mandado avisar. O que me traz cá é aquela conversa que teve com a minha mulher sobre os estudos do rapaz. É que nem sei se ela entendeu bem o que a Senhora lhe disse e, como todos queremos o melhor para o menino, gostaria de deixar tudo em pratos limpos.

Olhe senhor Eduardo – é este o seu nome? Não é? -, o seu pequeno é muito bom na Redacção e escreve com poucos erros no ditado; nas contas e nos problemas tem bastante dificuldade. Na História e Geografia vai-se safando e a desenhar também não é lá grande coisa. Mas ainda faltam quase três meses para o exame e até lá ainda muita água vai correr por baixo das pontes, apesar de caminharmos para o Verão. Neste tempo ainda há-de melhorar muito e até é muito natural que possa ir fazer um bom exame.

Mas… Tenho andado a pensar no António e daí ter dito a sua mulher que quem sabe se não seria melhor andar mais um ano na escola. Tinha possibilidade de aperfeiçoar-se, ia acompanhando e aprendendo a arte consigo e no fim do ano fazia um bonito exame, ficando melhor preparado e sem custos de maior. Além disso, este ano é dos mais novos da aula e, no próximo ano, metade dos da 4ª classe serão mais velhos que ele. Mas, o meu interesse é passar os alunos; o professor não gosta de deixar alguém sem ir a exame; com o António é diferente: sinto muito orgulho em ver como escreve, parece um pequeno escritor. E, se estiverem de acordo, não via qualquer grande problema em não o propor a exame. Principalmente porque estou convencida que era bom para ele e ele acabaria por se sentir muito bem entre os mais novos – não devemos esquecer-nos que sempre foi o mais novo da sua classe.

Parecem-me, Senhora Professora, que as suas ideias são muito simpáticas e estou perfeitamente disposto, quando chegar a altura, a deixar o destino do moço nas suas mãos. Entretanto, até lá, o assunto fica entre nós, pois mesmo à minha Engrácia vou dizer-lhe que ainda falta muito tempo para os exames e a Senhora Professora fará, de acordo com a nossa opinião, o que for melhor.

O tempo passou a correr, os pais do António foram os dois chamados à escola para esclarecerem, com a Professora, se queriam deixar o filho na escola, durante mais um ano, isto é, repetir a quarta classe. E, convencidos, os três de que essa solução seria a melhor para o António, assim se fez. Na proposta de alunos para exame da quarta classe não figurava o António Pires.

No ano seguinte, com dez anos e meio, apresentou-se a exame um rapaz, de nome António Pires, com uma caligrafia impecável, um ditado sem erros e uma redacção formidável, sobre uma história a gosto do aluno, um desenho mediano e uma conta e prova real certas, embora o problema não estivesse completo. Porém, na prova oral, a desenvoltura na fala e a facilidade de expressão levaram o júri a dar-lhe “Distinção” e, uma das Senhoras Professoras a pedir todos os dados do rapaz, pois queria falar com os pais sobre uma hipótese de o mandar estudar para o Seminário, como um dos protegidos da Casa Robalo que todos os anos custeava dois novos alunos, até chegarem a padres, em Portalegre.

E, passados doze anos, o caldeireiro Eduardo Pires, a Dona Engrácia da Conceição e a Senhora Professora do António – que ele sempre fez questão de assim chamar -, eram os três Convidados de Honra na missa nova do Senhor Padre António Pires.

Constam da sua bibliografia catorze livros, desde hábitos e costumes das gentes da nossa terra a ensaios sobre teologia, dialéctica e oratória, destacando-se as cartas e sermões que, ao longo da sua carreira, foi escrevendo.

Uma curiosidade: os catorze livros, todos com a sobrecarga de “exemplar nº 1, dedicado e oferecido à Senhora Professora do António, com a maior gratidão do Mundo e um pedido de Bênção especial e longos anos de vida”, foram oferecidos à Biblioteca do Seminário Maior, num pequeno armário de madeira feito pelo pai do António. A Senhora Professora faleceu depois dos pais do Padre António, após receber o 10º livro, deixando escrito que a caixa com os livros deveria ser entregue ao autor para que a enviasse ao seu destino – Biblioteca do Seminário Maior.

E, num pequeno memorial, a Professora escreveu: Quero lembrar ao maior escritor que conheci que outros, muito grandes, nem sempre foram os maiores. Na Grécia, Sófocles - o grande mestre da tragédia – perdeu um concurso de obras trágicas. No Brasil, Guimarães Rosa – um dos maiores escritores de contos de língua portuguesa -, não venceu um concurso de contos. Em Portugal, Fernando Pessoa – um dos génios da nossa poesia – perdeu, um dia, um concurso de poesia. E, para finalizar, na Escola da Serra, o Padre António – o maior autor que conheci – perdeu um ano, repetindo a 4ª classe.

Que nos perdoe tão maravilhoso prejuízo.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Filantropo

Juntou-se ali para cima de metade do povo. Uns na roda que cercava o pobre homem, outros espalhando-se pelas sombras das oliveiras e videiras da beira da estrada e um último magote encostado à empena da casa da Associação.

A canícula apertava e todos iam limpando a cara com os tradicionais lenços encarnados que era uso trazerem à volta do pescoço. Também, junto da fonte, a escassos trinta metros, alguns esperavam a sua vez para se dessedentarem debaixo da bica. A hora da sesta estava a chegar ao fim e não havia maneira de chegar a autoridade e também a empregada do posto de socorros para fazer uma primeira análise e tratar a ferida na cara do Chico Coxo, que continuava esparramado no meio da poeira do caminho, já com uma razoável poça de sangue junto da cara.

Ao lado, a “arma do crime”, constituída por uma lousinha, de arestas cortantes e tamanho apropriado ao lançamento com uma das mãos.

No chão, meio de bruços e em cabelo, de mãos estendidas, olhos semi-cerrados e um ar de mais terror que outra coisa, estava o Chico Coxo, parecendo olhar para um rasgão nas calças e sinal de sangue também no joelho direito.

A crescente vozearia daquela gente, ali junta, metia muito medo ao Chico, cuja capacidade de discernimento era poucochinha, como se diz no povo. Desde nascença sempre fora apoucado, mas nunca tinha feito mal fosse a quem fosse. Por isso já as opiniões começavam a pender claramente para a defesa do pobre homem, contra alguns, poucos aliás, exaltados, que o apelidavam de malandro, que melhor fora se se deitasse ao trabalho, em vez de se meter, constantemente, em trapaças.

Ali por perto, num vaivém sem grandes passadas e cada vez mais sorumbático à medida que o tempo ia passando, o Ti’Zé da Abelha, autor da pedrada que prostrou o Chico, ia ouvindo, sem proferir palavra, mesmo os que lhe criticavam a
acção, alegando que não se atira assim uma pedra daquelas, por mais grave que tenha sido a ofensa. Pode matar-se uma pessoa.

Mas, logo vinha outro que achava muito bem que alguém ensinasse o madraço a não se meter com as outras pessoas, a respeitar toda a gente e a não provocar distúrbios na terra.

Porém, logo se soltaram as vozes em defesa do Chico, dizendo que nunca fez mal a uma mosca, nunca desrespeitou fosse quem fosse e até já tinha sido muito útil quando avisou sobre incêndios, ou na outra vez em que o Manel da Carlota ficou debaixo do carro, lá na ladeira das Vagens.

Os ânimos iam-se exaltando e parece que ainda ninguém saberia o motivo da pedrada que atingira em cheio o pobre homem.

Já com uma assembleia mais reduzida, chegou finalmente o jipe da Guarda Republicana, de onde desceram o Cabo Maçarico e um guarda que vinha a guiar e acompanhou o superior com um bloco na mão e uma esferográfica. Chegados junto do Chico, disse-lhe o Cabo da Guarda:

Conheces-me? Tens medo de mim? Podes levantar-te?

O Chico como que acabou por se sentir, finalmente, protegido. Esboçou um trejeito de sorriso e levantou-se, dizendo que sabia bem que era a Guarda e que não tinha medo, porque não tinha feito mal a ninguém. Foi então que apontou o dedo ao Ti’Zé da Abelha, enquanto encolhia os ombros, quando o Guarda perguntou quem lhe fez aquilo na cabeça e porquê?

Foi a vez de perguntar ao acusado se tinha sido ele a atirar a pedra e porque o fizera, ferindo com gravidade, que poderia mesmo ter sido muito maior, aquele pobre homem que a Guarda conhecia bem e nunca teve nada a apontar-lhe.

O Ti’Zé confirmou o arremesso da pedra, porque apanhou o tratante a sair de sua casa, certamente com o intuito de roubar alguma coisa, ou meter-se com alguém que por lá estivesse. Só o apanhou a saltar o muro da tapada, mas vinha atrás dele desde casa. E rematou: Olhe, atirei o que encontrei mais à mão. Não queria feri-lo,
nem fazer-lhe mal, mas calhei a acertar-lhe, o que se há-de fazer!... É tratá-lo.

Os Guardas olharam um para o outro e disse o Cabo: uma vez que há feridos, e que o acusado confessa e se mostra arrependido, vamos apenas…

Foi a vez de se pronunciar o sr. Amílcar, um homem que ali casara na aldeia e era muito ouvido e respeitado na terra. Constava que antes de ter feito fortuna lá pelas Áfricas – razão porque lhe chamavam o “brasileiro” –, estudara. Começou por pedir licença para falar com o Chico, com quem costumava ter longas conversas e perguntou-lhe o que tinha feito e porque lhe tinham atirado a pedra?

O homem levantou os olhos e, num à vontade fora do habitual, respondeu:

Senhor brasileiro, eu vinha na estrada e deu-me muita vontade de arrear a calça. Saltei o muro da tapada do Ti’Zé para me ir abaixar lá atrás dele. Quando vinha
outra vez para a estrada!... Olhe!... E apontava para a testa ensanguentada ao mesmo tempo que se dirigia ao Cabo da guarda e ao “brasileiro”, chamando-os ao pé do muro da tapada para lhes mostrar a prova que estava lá atrás, bem visível.

O “brasileiro” quando viu o guarda e o Cabo pegarem outra vez no bloco para tomarem notas, voltou-se para trás e acrescentou: Deixem o pobre do Chico em sossego, pois ele tem mais juízo que muitos que aqui estão, vai para três horas. Qualquer dia ainda acusam o pobre de filantropo, ou coisa que o valha, e logo os senhores virão a correr para se voltarem sobre este ou outro desgraçado. E, com um sorriso e muito boas tardes, afastou-se.

O Cabo da guarda voltando-se para os circunstantes, mandou-os embora e, quanto ao senhor “brasileiro”, resmungou em voz baixa: Lá por andar por onde andou, ou ter estudado o que estudou, não fez mais que perturbar o desenvolvimento normal das diligências; Melhor fora que se metesse na sua vida e deixasse os outros cumprir o seu dever.

Meteu-se no jipe e deu ordem ao Guarda Matias para arrancar. Já fora da povoação, em plena estrada, foi o guarda que quebrou o silêncio:

Oh! Chefe, o “brasileiro” não será parvo de todo e, logo me pareceu, quando o vi chegar-se, com aquele narizinho empinado, que não a ia fazer boa. Sempre me saiu cá um farsante!... Mas… antes que mal procure, o que queria ele dizer com aquela de… espere lá a ver se lembro…filantropo?

Aquilo, guarda Matias, são palavrões só para despistar. Tenho a certeza de que nem ele mesmo saberá o que querem dizer. Mas, pensa bem: Então não fomos lá para investigar uma agressão?

É claro chefe, foi por isso que chamaram e lá fomos! Exactamente uma agressão.

Então a palavra do brasileirote só pode querer dizer agredido e nada mais. Quando chegarmos ao Posto hei-de ver num livro que lá temos e onde estão as palavras todas da nossa língua portuguesa.

Mas olha que gostei da tua observação e da maneira como topaste logo os trejeitos do artista que, quem sabe, começou por se abeirar de nós para perturbar o nosso trabalho e baralhar a nossa investigação.

É isso mesmo, afinal ele é capaz de ser um grandessíssimo filantropo. Veio ali para agredir o normal desenvolvimento das diligências da Autoridade.

E, à guisa de descargo de consciência, voltou-se para o guarda e segredou-lhe:

Olha Matias a continuares com esse espírito fino e essa tua inteligência, podes chegar longe, cá na Guarda!...