Estava ali para cima de metade das pessoas da terra. Uns na roda que cercava o pobre homem, outros espalhando-se pelas sombras das oliveiras e videiras da beira da estrada e um último magote encostado à empena da casa da Associação.
A canícula apertava e todos iam limpando a cara com os tradicionais lenços encarnados que era uso trazerem à volta do pescoço. Também, junto da fonte, a escassos trinta metros, alguns esperavam a sua vez para se dessedentarem debaixo da bica. A hora da sesta estava a chegar ao fim e não havia maneira de chegar a autoridade e também a empregada do posto de socorros para fazer uma primeira análise e tratar a ferida na cara do Chico Coxo, que continuava esparramado no meio da poeira do caminho, já com uma razoável poça de sangue junto da cara.
Ao lado, a “arma do crime”, constituída por uma lousinha, de arestas cortantes e tamanho apropriado ao lançamento com uma das mãos.
No chão, meio de bruços e em cabelo, de mãos estendidas, olhos semi-cerrados e um ar de mais terror que outra coisa, estava o Chico Coxo, parecendo olhar para um rasgão nas calças e sinal de sangue também no joelho direito. A crescente vozearia daquela gente ali junta metia muito medo ao Chico, cuja capacidade de discernimento era poucochinha, como se diz no povo. Desde nascença sempre fora apoucado, mas nunca tinha feito mal fosse a quem fosse. Por isso já as opiniões começavam a pender claramente para a defesa do pobre homem, contra alguns, poucos aliás, exaltados que o apelidavam de malandro, que melhor fora se se deitasse ao trabalho, em vez de se meter, constantemente, em trapaças.
Ali por perto, num vaivém sem grandes passadas e cada vez mais sorumbático à medida que o tempo ia passando, o Ti Zé da Abelha, autor da pedrada que prostrou o Chico, ia ouvindo, sem proferir palavra, mesmo os que lhe criticavam a acção, alegando que não se atira assim uma pedra por mais grave que possa ter sido a ofensa.
Depois, logo vinha outro que achava muito bem que alguém ensinasse o madraço a não se meter com as outras pessoas, a respeitar toda a gente e a não provocar distúrbios na terra. Não demorou que várias vozes se levantassem em defesa do Chico, dizendo que nunca fez mal a uma mosca, nunca desrespeitou fosse quem fosse e até já tinha sido muito útil quando avisou sobre incêndios, ou de outra vez em que o Manel da Carlota ficou debaixo do carro, lá na ladeira das Vagens. Os ânimos iam-se exaltando e parece que ainda ninguém saberia o motivo da pedrada que atingira em cheio o pobre homem.
Já com uma assembleia mais reduzida, chegou finalmente o “jeep” da Guarda Republicana, de onde desceram o Cabo Maçarico e um guarda que vinha a guiar e acompanhou o superior com um bloco na mão e uma esferográfica. Chegados junto do Chico, disse-lhe o Cabo da Guarda: Conheces-me? Tens medo de mim? Podes levantar-te?
O Chico como que acabou por se sentir, finalmente, protegido. Esboçou um trejeito de sorriso e levantou-se, dizendo que sabia bem que era a guarda e que não tinha medo, porque não tinha feito mal a ninguém. Foi então que apontou o dedo ao Ti Zé da Abelha, enquanto encolhia os ombros, quando o guarda perguntou quem lhe fez aquilo na cabeça e porquê?
Foi a vez de perguntar ao acusado se tinha sido ele a atirar a pedra e porque o fizera, ferindo com gravidade, que poderia mesmo ter sido muito maior, aquele pobre homem que a Guarda conhecia bem e nunca teve nada a apontar-lhe.
O Ti Zé confirmou o arremesso da pedra, porque apanhou o tratante a sair de sua casa, certamente com o intuito de roubar alguma coisa ou meter-se com alguém que por lá estivesse. Só o apanhou a saltar o muro da tapada, mas vinha atrás dele desde casa. E rematou: Olhe, atirei o que encontrei mais à mão. Não queria feri-lo, nem fazer-lhe mal, mas calhei a acertar-lhe, o que se há-de fazer!...É tratá-lo.
Os guardas olharam um para o outro e disse o Cabo: uma vez que há feridos, e que o acusado confessa e se mostra arrependido, vamos apenas…
Foi a vez de se pronunciar o sr. Amílcar, um homem que ali casara na aldeia e era muito ouvido e respeitado na terra. Constava que antes de ter feito fortuna lá pelas Áfricas – razão porque lhe chamavam o brasileiro –, estudara. Começou por pedir licença para falar com o Chico, com quem costumava ter longas conversas e perguntou-lhe o que tinha feito e porque lhe tinham atirado a pedra?
O homem levantou os olhos e, num à vontade fora do habitual, respondeu:
Senhor brasileiro, eu vinha na estrada e deu-me muita vontade de arrear a calça. Saltei o muro da tapada do Ti Zé para me abaixar lá atrás dele. Quando vinha outra vez para a estrada, olhe!... E apontava para a testa ensanguentada ao mesmo tempo que se dirigia ao Cabo da guarda e ao brasileiro, chamando-os ao pé do muro da tapada para lhes mostrar a prova que estava lá atrás, bem visível.
O “brasileiro” quando viu o guarda e o Cabo pegarem outra vez no bloco para tomarem notas, voltou-se para trás e acrescentou: Deixem o pobre do Chico em sossego, pois ele tem mais juízo que muitos que aqui estão, vai para três horas. Qualquer dia ainda acusam o pobre de filantropo, ou coisa que o valha, e logo os senhores virão a correr para se voltarem sobre este ou outro desgraçado. E, com um sorriso e muito boas tardes, afastou-se.
O Cabo da guarda voltando-se para os circunstantes, mandou-os embora e, quanto ao senhor brasileiro, resmungou em voz baixa: Lá por andar por onde andou, ou ter estudado o que estudou, não fez mais que perturbar o desenvolvimento normal das diligências; Melhor fora que se metesse na sua vida e deixasse os outros cumprir o seu dever.
Meteu-se no “jeep” e deu ordem ao guarda Matias para arrancar. Já fora da povoação, em plena estrada, foi o guarda que quebrou o silêncio:
Oh! Chefe, o brasileiro não será parvo de todo e, logo me pareceu, quando o vi chegar-se, com aquele nariz empinado, que não a ia fazer boa. Sempre me saiu cá um farsante!... Mas… antes que mal procure, o que queria ele dizer com aquela de… espere lá a ver se lembro…filantropo?
Aquilo, guarda Matias, são palavrões só para despistar. Tenho a certeza de que nem ele mesmo saberá o que querem dizer. Mas, pensa bem: Então não fomos lá para investigar uma agressão?
É claro chefe, foi para isso que nos chamaram e foi por isso que lá fomos! Exactamente uma agressão.
Então a palavra do brasileirote só pode querer dizer agredido e nada mais. Mas olha que gostei da tua observação e da maneira como topaste logo os trejeitos do artista que, quem sabe, começou por se abeirar de nós para agredir o nosso trabalho. É isso mesmo, afinal ele é capaz de ser um grandessíssimo, um verdadeiro filantropo.
E, à guisa de descargo de consciência, voltou-se para o guarda e segredou-lhe:
Olha Matias a continuares com esse espírito fino e essa tua inteligência, podes chegar longe, cá na guarda.