O Jaime nasceu no olival da Barca do Pego e, na companhia do clã, passava, na nossa aldeia, várias vezes por ano, ficando, quando calhava, algumas semanas.
Trazia a carroça com a garotada e a mulher e acomodava-se, no cabanal da rua da carreira, junto da atafona.
Estava no centro do povo, aproveitava o espaço para ir tosquiando as bestas que apareciam, dava dois dedos de conversa a quem passava e tinha a taberna à mão de semear.
Conhecia e era conhecido de toda a gente. Em pequeno ainda chegou a frequentar a escola local. Era como se fosse filho da terra e, dum modo geral, muito querido e estimado. Porém, nunca aceitou trabalhos no campo, fora das suas artes de tosquiador, ferrador, latoeiro e caldeireiro. Trazia, habitualmente, uns burritos e uma ou outra besta, presos atrás da carroça, para venda e troca.
A mulher e os filhos angariavam, de porta em porta, o sustento da família e, segundo palavras do Jaime, a Serra era terra onde se recebia mais do que o que se comia. Outras havia em que até a água era dada de má vontade, a crer nas afirmações do cigano.
Mas nessas nem apetecia poisar; fazia-se o serviço que havia, o mais rápido possível e … “ala moço, que se faz tarde”!...
Uma ocasião, teve de entrar numa demanda. Foi acusado, no tribunal de Mação, pelo Ti’ Chico Manco, de o ter enganado, vendendo-lhe uma besta velha e cansada, que nem dava para ir à horta, e, de cavalaria, nem com a albarda podia. Foram estas as queixas contra o sr. Jaime cigano, mais conhecido por Jaime Tarita, que a GNR teve dificuldade em notificar.
Foram ouvidas várias testemunhas de defesa. Eis um dos depoimentos:
É claro que a costela de cigano está lá – disse o Ti’ Abílio, ao tempo Cabo de Ordens –. É finório nos negócios, mas aldrabão nunca foi, mais que qualquer um de nós.
Posso afiançar, ao Senhor Doutor Juiz, que o Jaime não enganou o Chico Manco – Francisco Alves Mendes, melhor dizendo –, pois, eu próprio presenciei o negócio, assim como muitos outros, lá na taberna da Serra. Vendeu-lhe uma besta por duas notas. Acha o Senhor Doutor Juiz que, por esse dinheiro, lhe podia dar um cavalo de corrida!?... Será que o aldrabão é o Jaime!?...
Interrogado, o Jaime apenas disse que a besta do negócio sempre esteve à vista de toda a gente e se tivesse que meter gato por lebre não seria na Serra.
Acabei por ir em paz e com a caderneta limpinha como, orgulhosamente, se gabava o Jaime Tarita, quando lhe falavam no tribunal.
Numa das passagens pela terra, o Jaime cruzou-se com uma trupe de ciganos, desconhecidos por ali, mas que o Jaime conhecia, de ginjeira.
Passavam a vida a vender gado barato, não eram de confiança, parecia que tinham cola nos dedos e, pior ainda, eram como os espanhóis: tinham os olhos na ponta dos dedos. Estes foram os avisos feitos na taberna, destinados a precaver quem com eles quisesse fazer algum negócio, ou permitisse que se aproximassem.
À saída da missa, no largo das tabernas, juntou-se gente.
Os ciganos tinham um burro, muito bem apresentado, com pouca idade, bom de cavalaria e manso como as pedras da calçada. Não havia dúvida que valia tanto como o do Jaime e estavam a pedir vinte e quatro notas, enquanto o outro não desamarrava das quarenta.
O Jaime não conseguiu aproximar-se da pechincha, mas, mesmo à distância, pôde ver
que o animal não via do olho esquerdo – os ciganos tinham-no à rédea curta e estavam sempre nesse lado do animal –.
O Jaime viu ainda, embora a albarda nunca fosse tirada, que havia sinais de cicatrizes por cima dos quartos traseiros e numa das patas estavam sobrepostas duas ferraduras.
O comprador mais entusiasmado era o Ti’Jorge Moleiro que não gostava do Jaime nem usava os seus serviços.
Gabava-se de saber tosquiar melhor que o Jaime e que ainda o Jaime não era nado já ela mexia em bestas. Daí a razão do Jaime se afastar do novelo de gente que presenciava o negócio, como convinha aos ciganos, e se refugiar na taberna a beber um copo e, de conversa com clientes seus de longa data, foi enumerando as razões por que o burro dos ciganos era tão barato.
Feito o trato e passadas as notas, os ciganos desapareceram como que por encanto e, todo vaidoso da sua aquisição, entrava na tasca o Ti Jorge, para comemorar o bom negócio que acabava de fazer.
Atirou, assim como que em ar de desafio:
Ó Jaime, não queres dar quarenta notas pelo belo animal que acabo de comprar?!... Com albarda e tudo, ainda te tiro cinco notas. Eu ganho bom dinheiro e tu ficas com uma estampa de burro.
Olhe Ti Jorge, caro ou barato, vendo o que é meu, sirvo os meus clientes e, pode estar certo que não vendo gado cego, descomposto de quartos traseiros, com costelas partidas, ou coisa pior, e com duas ferraduras na mesma pata. Deus lhe dê mais saúde que a do animal que acaba de comprar.
É que quando eu nasci já o Ti’Jorge mexia em bestas, mas estes dois olhos que a terra me há-de comer, vêem melhor os defeitos dos burros e as manhas dos ciganos que o Ti’Jorge alguma vez há-de enxergar.
E, voltando-se para a assistência que entretanto se ia juntando, disse, com calma e serenidade: quando alguém quiser uma besta mais ou menos brava, mas sem maleita e defeito físico grave, pode pedir o meu conselho, ou comprar os meus animais – não levo nada por isso, desde que esses amigos não saibam mais do que eu e peçam, por isso, a minha ajuda...
Nesta altura já muitos iam dizendo, em surdina, mas perfeitamente audível na assistência: mas que diabo quer o Jaime dizer quando se refere a animais sem maleita e defeito físico grave?...
Até o Ti’Jorge, começava a cair em si e a interrogar-se sobre o que quereria o cigano dizer. Mas não daria, ainda, parte de fraco e, para rematar, pediu mais uns copos para os circunstantes. Porém, logo que os ânimos serenaram, saiu, sorrateiramente, e dirigiu-se ao palheiro onde tinha guardado o animal.
Qual não foi o seu espanto quando viu o burrito deitado, mostrando uma enorme cicatriz na região lombar, levantando-se com dificuldade, com uma perna a claudicar e mostrando, de facto, cegueira num olho.
Vociferou e saiu do palheiro proferindo as maiores barbaridades e impropérios contra os ciganos que, tinham dado “às de vila Diogo” e desaparecido, como que por encanto.
Recolheu-se a casa e menos de oito dias passados, já com o burro enterrado e mais umas três notas gastas com o veterinário, atreveu-se a entrar na taberna, avisando que não lhe falassem mais de burros, nem de ciganos.
Todavia, fazia a justiça de dizer que, quanto a ciganos, só o Jaime merecia ser bem recebido; era o terceiro negócio que fechava com ciganos e sempre fora enganado.
De futuro, só comprarei bestas ao Jaime, ou com o seu conselho. Logo que por cá apareça, há-de ter um bom jantarinho de carne, como pedido das minhas desculpas.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
O Tonho Rosa
Amante da água, minava-se por chapinhar nas levadas das regas, no Verão, e nas valetas dos caminhos, no tempo das chuvas.
Sempre descalço, as calças pelo meio da barriga das pernas e amarradas na cintura por um cordel, tapava o tronco com o que restava de uma camisa e por cima farrapos de um velho casaco de serrobeco amarelado. Na cabeça, a carapuça de sempre; melhor dizendo, os restos de um barrete preto que apanhou algures e não voltou a tirar da cabeça.
Era o filho mais novo de uma irmandade de quatro rapazes e três raparigas, e o único com fraqueza de cabeça e poucochinho – como dizia a mãe, quando lhe notava uma grande tristeza no olhar e o via ficar quieto até que o importunassem.
Desde pequeno que manifestou atrasos: custou-lhe a falar e nunca o fez perfeitamente – emitia uns sons, perceptíveis para quem estava habituado, mas indecifráveis para os estranhos –.
Nunca aprendeu a ler nem escrever, não fazia com a perfeição mínima qualquer trabalho, não dava conta de um recado e seguia sempre à frente, ou atrás, dos pais e irmãos, quando ia para as hortas.
Convivia bem com qualquer animal e afastava-se das pessoas: já tinha apanhado coices de bestas, mordidelas de cães, arranhadelas de gatos, socos e pontapés dos irmãos e de outros garotos e continuava sem medo de nada.
As feridas cicatrizavam com muita facilidade e, embora deixasse cortar o cabelo, nunca ninguém foi capaz de lhe cortar as unhas das mãos, já que as dos pés andavam gastas pelas pedras e serviam de protecção natural.
A muito custo lá o levaram às sortes; No entanto entrou primeiro que todos os outros e foi logo dispensado; era evidente a sua indisponibilidade para o serviço militar, na opinião do médico que o viu e mandou em paz e isento de taxa militar.
Assim vivia lá na Terra; esperando, sentado na beira das hortas, enquanto irmãos e
pais trabalhavam, até que chegasse a hora das refeições.
Comia sempre com as mãos e era muito amigo de pão e fruta, de toda a espécie, que tanto colhia nas árvores das hortas da família, como nas que estivessem mais à mão. Gostava muito de queijo e mamava nas cabras, à mistura com os cabritos.
Tinha boa saúde, se bem que fraca compleição física.
Aí pelos treze ou catorze anos notaram-lhe as primeiras perturbações que a mãe chamava “acidentes”. Entrava em transe, esbugalhava os olhos, espumava pela boca, rangia os dentes e contorcia-se espojado no chão. Sinais evidentes de epilepsia, que o acompanhou por toda a vida. Quando lhe davam os “acidentes”, era esperar que passassem, deixá-lo tranquilizar e descansar. Nada mais, como dizia a mãe, conformada com a desgraça.
Houve uma altura em que deram pela falta do Tonho; teria ele á volta de vinte e cinco anos.
Procuraram por todos os recantos em volta da aldeia e nem sinais do moço.
Chegaram mesmo a procurar em poços e nos pegos da ribeira, dada a atracção que ele sentia pela água.
Ao fim de uma semana, participaram o desaparecimento na Guarda Republicana do concelho, mas nem uma fotografia havia e os sinais comunicados eram comuns a muitos pedintes que ao tempo enxameavam pelas aldeias.
Um mês passado e nem sinais de morte, ou vida, do rapaz. Num raio de muitos quilómetros todas as Terras fizeram buscas, em vão.
Quase três meses passados, sobre a madrugada, o pai do Tonho saiu à tapada para as necessidades e, encontra o moço sentado nas guardas da eira.
Estava acordado, com a cabeça entre as mãos e olhando para o pai, cheio de medo, esperando a sova que pensava lhe iria cair em cima.
Metia dó ver aquele homem feito, tal e qual um animalzinho indefeso, à espera de um pontapé, dizia, comovido até às lágrimas, o Ti Adriano Marques, que acrescentava: Chamei-o, encostei-o a mim, acarinhei-o e perguntei-lhe: onde te meteste, Tonho? Tens fome? Anda, vai para o palheiro dormir, que amanhã dizes-me tudo, está bem? Nunca mais vou esquecer a cara do rapaz, como um menino, quando percebeu que lhe dava carinho e não porrada.
A todas as perguntas encolheu os ombros e parecia não perceber o que lhe perguntavam, porque não mostrava lembrar-se de nada.
Estive a dormir lá na pedra do meio dos pinheiros; não fiz mal a ninguém, não vi ninguém e andei por muito longe, dentro de uma camioneta de pinheiros. E mais não disse.
Passados muitos meses, um dia no largo da taberna, apareceu um pedinte, nunca antes visto por ali e que tinha acabado de dar a volta ao povo.
Interrogado, por uns homens que ali estavam, sobre a sua proveniência, porque nunca por ali tinha aparecido e outros assuntos de circunstância, acabaram bebendo um copo e em conversa fiada. Nisto…
Chega à porta da taberna o Tonho Rosa e mal fitou o pedinte, desatou numa corrida, só parando lá em casa, escondido no palheiro onde dormia, habitualmente.
O esmolante parecia ter visto um fantasma; fechou os olhos, abanou a cabeça, como que procurando acordar dum sonho e perguntou: conhecem aquele homem que aqui esteve há momentos? É que andou comigo e mais uns colegas meus, lá pela ribeira da Isna, nas terras de Oleiros e encostas do Moradal. Nunca pediu, acompanhava-nos, como que maravilhado, e ia comendo o que lhe dávamos.
Ele tem uns ataques de vez em quando, não tem? Só sei que disse que se chama Tonho e que foi posto fora de casa pelos pais.
Até que um dia, estávamos todos bêbedos, na malhada, adormecemos e, de manhã o Tonho tinha desaparecido, sem levar nada e sem deixar rasto. Até que hoje…
Pois não restam dúvidas sobre as suas palavras; o rapaz é filhote daqui, nunca fez mal a ninguém, mas é apoucado e tem “acidentes”, de vez em quando. De facto, aqui há meses esteve desaparecido uns tempos e nunca conseguimos saber onde esteve, ou por onde andou.
Não se importa que mandemos chamar a família, pois vão querer falar consigo, apenas para ficarem a saber o que tem a dizer-lhes?
Por mim estou às ordens e tenho todo o tempo do mundo para ajudar, se puder ser útil para esclarecer qualquer coisa sobre o rapaz. Tenho muito boa ideia dele.
Veio o Ti’Adriano e acabaram por estar de prosa um bom par de horas. Depois acabou por convidar o pedinte para a ceia e para um encontro com o Tonho, mas teria que primeiro ir preparar as coisas, para o rapaz não desaparecer.
Que ficasse ali, na taberna, que depois mandaria chamá-lo, quando tudo estivesse preparado.
Lá em casa, o Tonho, cabisbaixo e muito tímido, andava por ali, cheio de medo e, quando viu o pai chegar, percebeu que ele lhe queria falar e foi ter com ele. Cabeça no chão, chegou-se ao pai, como que a pedir protecção e ali ficou muito quieto.
Quando o pai lhe levantou a cabeça e a olhar bem fixo para ele lhe disse que já sabia por onde ele tinha andado, com quem tinha acompanhado e ficou muito contente quando soube que sempre se tinha portado bem, não tinha roubado nada e que quando quis voltar para casa, voltou e pronto.
Mas os amigos dele ficaram tristes e preocupados quando viram desaparecer o colega e fartaram-se de procurá-lo sem conseguirem encontrá-lo. Dizem que sempre te trataram bem; É verdade?
E, quando o Tonho acenou com a cabeça que sim, o pai disse-lhe: É que aquele pobre que tu viste lá na taberna do Manel é um desses teus colegas, não é? Então porque fugiste? Não queres conversar com ele? Perguntar pelos outros amigos?
O Tonho, mais confiante e percebendo que afinal o pai, não lhe ia bater, sorriu, o que era raro nele, e abanou a cabeça em sinal de aprovação e contentamento.
O pai fez sinal ao irmão mais velho e disse-lhe que fosse à taberna e trouxesse o pedinte que lá estava, mandando adiantar a ceia pois o pobre cearia com eles e, se estivesse de acordo, dormiria no palheiro, ao pé dos rapazes.
O Tonho ouviu o recado e mais uma vez riu. Estava contente!
Chegou o homem e aproximando-se do Tonho, abraçou-o e disse-lhe: Sabes que a rapaziada tem sentido muito a tua falta, lá por cima. Eu, achei que queria conhecer outras terras e estendi-me até aqui. Não estou arrependido; há aqui gente muito boa e amiga dos pobres.
E a melhor surpresa: encontrei um amigo, não é verdade?!...
O Tonho ia olhando para ele, baixando os olhos, voltando a olhar e parecia estar até a gostar. Mas quando o pedinte lhe perguntou porque se tinha ido embora, agitou-se e abanou a cabeça em sinal de desagrado, balbuciando: senti que ia ter “acidente” e fugi.
Estive escondido numa buraca lá na serra até passarem os sinais e depois meti-me numa camioneta que estava lá e vim ali para a nossa estrada.
Ninguém me fez mal; eu gostava muito da malta, mas agora quero ficar aqui e, olhando para o pai, calou-se. Ficou cabisbaixo e deixou que os outros continuassem a falar.
Só se levantou quando viu que o colega estava a comer pouco para se chegar junto dele e fazer gestos para que comesse muito, pois não queria que ficasse com fome.
Ao outro dia o mendigo seguiu o seu caminho e o Tonho continuou no dia a dia de todos os dias, acompanhando os pais e irmãos para as hortas.
O pedinte voltou a passar mais vezes e sempre ceava lá em casa e dormia no palheiro, com os rapazes.
Com o passar dos anos, a doença do Tonho foi-se agravando, os ataques vinham mais amiúde e provocavam mais incómodos, antes e depois de acontecerem.
Quando os pressentia o Tonho ficava aflito, inquieto e com sinais de ansiedade e sofrimento, até que numa dessas vezes, desatou a fugir e foi-se esconder numa gruta do penedo da ladeira dos brejos.
Quando foram no seu encalço, eram já abundantes os sinais de sangue na entrada da caverna e, lá dentro, estava deformado e com aspecto de grande sofrimento, depois de lutar contra a morte, o cadáver do Tonho Rosa.
O pedinte dos lados lá de cima, como ficou conhecido na terra, continuou a passar e a cear na casa dos pais do Tonho, indo de seguida dormir no palheiro.
Porém, nunca saía de ao pé da mesa sem pedir um Padre-nosso, pela alma daquele inocente que, segundo as suas próprias palavras, Deus já Lá tinha….
Sempre descalço, as calças pelo meio da barriga das pernas e amarradas na cintura por um cordel, tapava o tronco com o que restava de uma camisa e por cima farrapos de um velho casaco de serrobeco amarelado. Na cabeça, a carapuça de sempre; melhor dizendo, os restos de um barrete preto que apanhou algures e não voltou a tirar da cabeça.
Era o filho mais novo de uma irmandade de quatro rapazes e três raparigas, e o único com fraqueza de cabeça e poucochinho – como dizia a mãe, quando lhe notava uma grande tristeza no olhar e o via ficar quieto até que o importunassem.
Desde pequeno que manifestou atrasos: custou-lhe a falar e nunca o fez perfeitamente – emitia uns sons, perceptíveis para quem estava habituado, mas indecifráveis para os estranhos –.
Nunca aprendeu a ler nem escrever, não fazia com a perfeição mínima qualquer trabalho, não dava conta de um recado e seguia sempre à frente, ou atrás, dos pais e irmãos, quando ia para as hortas.
Convivia bem com qualquer animal e afastava-se das pessoas: já tinha apanhado coices de bestas, mordidelas de cães, arranhadelas de gatos, socos e pontapés dos irmãos e de outros garotos e continuava sem medo de nada.
As feridas cicatrizavam com muita facilidade e, embora deixasse cortar o cabelo, nunca ninguém foi capaz de lhe cortar as unhas das mãos, já que as dos pés andavam gastas pelas pedras e serviam de protecção natural.
A muito custo lá o levaram às sortes; No entanto entrou primeiro que todos os outros e foi logo dispensado; era evidente a sua indisponibilidade para o serviço militar, na opinião do médico que o viu e mandou em paz e isento de taxa militar.
Assim vivia lá na Terra; esperando, sentado na beira das hortas, enquanto irmãos e
pais trabalhavam, até que chegasse a hora das refeições.
Comia sempre com as mãos e era muito amigo de pão e fruta, de toda a espécie, que tanto colhia nas árvores das hortas da família, como nas que estivessem mais à mão. Gostava muito de queijo e mamava nas cabras, à mistura com os cabritos.
Tinha boa saúde, se bem que fraca compleição física.
Aí pelos treze ou catorze anos notaram-lhe as primeiras perturbações que a mãe chamava “acidentes”. Entrava em transe, esbugalhava os olhos, espumava pela boca, rangia os dentes e contorcia-se espojado no chão. Sinais evidentes de epilepsia, que o acompanhou por toda a vida. Quando lhe davam os “acidentes”, era esperar que passassem, deixá-lo tranquilizar e descansar. Nada mais, como dizia a mãe, conformada com a desgraça.
Houve uma altura em que deram pela falta do Tonho; teria ele á volta de vinte e cinco anos.
Procuraram por todos os recantos em volta da aldeia e nem sinais do moço.
Chegaram mesmo a procurar em poços e nos pegos da ribeira, dada a atracção que ele sentia pela água.
Ao fim de uma semana, participaram o desaparecimento na Guarda Republicana do concelho, mas nem uma fotografia havia e os sinais comunicados eram comuns a muitos pedintes que ao tempo enxameavam pelas aldeias.
Um mês passado e nem sinais de morte, ou vida, do rapaz. Num raio de muitos quilómetros todas as Terras fizeram buscas, em vão.
Quase três meses passados, sobre a madrugada, o pai do Tonho saiu à tapada para as necessidades e, encontra o moço sentado nas guardas da eira.
Estava acordado, com a cabeça entre as mãos e olhando para o pai, cheio de medo, esperando a sova que pensava lhe iria cair em cima.
Metia dó ver aquele homem feito, tal e qual um animalzinho indefeso, à espera de um pontapé, dizia, comovido até às lágrimas, o Ti Adriano Marques, que acrescentava: Chamei-o, encostei-o a mim, acarinhei-o e perguntei-lhe: onde te meteste, Tonho? Tens fome? Anda, vai para o palheiro dormir, que amanhã dizes-me tudo, está bem? Nunca mais vou esquecer a cara do rapaz, como um menino, quando percebeu que lhe dava carinho e não porrada.
A todas as perguntas encolheu os ombros e parecia não perceber o que lhe perguntavam, porque não mostrava lembrar-se de nada.
Estive a dormir lá na pedra do meio dos pinheiros; não fiz mal a ninguém, não vi ninguém e andei por muito longe, dentro de uma camioneta de pinheiros. E mais não disse.
Passados muitos meses, um dia no largo da taberna, apareceu um pedinte, nunca antes visto por ali e que tinha acabado de dar a volta ao povo.
Interrogado, por uns homens que ali estavam, sobre a sua proveniência, porque nunca por ali tinha aparecido e outros assuntos de circunstância, acabaram bebendo um copo e em conversa fiada. Nisto…
Chega à porta da taberna o Tonho Rosa e mal fitou o pedinte, desatou numa corrida, só parando lá em casa, escondido no palheiro onde dormia, habitualmente.
O esmolante parecia ter visto um fantasma; fechou os olhos, abanou a cabeça, como que procurando acordar dum sonho e perguntou: conhecem aquele homem que aqui esteve há momentos? É que andou comigo e mais uns colegas meus, lá pela ribeira da Isna, nas terras de Oleiros e encostas do Moradal. Nunca pediu, acompanhava-nos, como que maravilhado, e ia comendo o que lhe dávamos.
Ele tem uns ataques de vez em quando, não tem? Só sei que disse que se chama Tonho e que foi posto fora de casa pelos pais.
Até que um dia, estávamos todos bêbedos, na malhada, adormecemos e, de manhã o Tonho tinha desaparecido, sem levar nada e sem deixar rasto. Até que hoje…
Pois não restam dúvidas sobre as suas palavras; o rapaz é filhote daqui, nunca fez mal a ninguém, mas é apoucado e tem “acidentes”, de vez em quando. De facto, aqui há meses esteve desaparecido uns tempos e nunca conseguimos saber onde esteve, ou por onde andou.
Não se importa que mandemos chamar a família, pois vão querer falar consigo, apenas para ficarem a saber o que tem a dizer-lhes?
Por mim estou às ordens e tenho todo o tempo do mundo para ajudar, se puder ser útil para esclarecer qualquer coisa sobre o rapaz. Tenho muito boa ideia dele.
Veio o Ti’Adriano e acabaram por estar de prosa um bom par de horas. Depois acabou por convidar o pedinte para a ceia e para um encontro com o Tonho, mas teria que primeiro ir preparar as coisas, para o rapaz não desaparecer.
Que ficasse ali, na taberna, que depois mandaria chamá-lo, quando tudo estivesse preparado.
Lá em casa, o Tonho, cabisbaixo e muito tímido, andava por ali, cheio de medo e, quando viu o pai chegar, percebeu que ele lhe queria falar e foi ter com ele. Cabeça no chão, chegou-se ao pai, como que a pedir protecção e ali ficou muito quieto.
Quando o pai lhe levantou a cabeça e a olhar bem fixo para ele lhe disse que já sabia por onde ele tinha andado, com quem tinha acompanhado e ficou muito contente quando soube que sempre se tinha portado bem, não tinha roubado nada e que quando quis voltar para casa, voltou e pronto.
Mas os amigos dele ficaram tristes e preocupados quando viram desaparecer o colega e fartaram-se de procurá-lo sem conseguirem encontrá-lo. Dizem que sempre te trataram bem; É verdade?
E, quando o Tonho acenou com a cabeça que sim, o pai disse-lhe: É que aquele pobre que tu viste lá na taberna do Manel é um desses teus colegas, não é? Então porque fugiste? Não queres conversar com ele? Perguntar pelos outros amigos?
O Tonho, mais confiante e percebendo que afinal o pai, não lhe ia bater, sorriu, o que era raro nele, e abanou a cabeça em sinal de aprovação e contentamento.
O pai fez sinal ao irmão mais velho e disse-lhe que fosse à taberna e trouxesse o pedinte que lá estava, mandando adiantar a ceia pois o pobre cearia com eles e, se estivesse de acordo, dormiria no palheiro, ao pé dos rapazes.
O Tonho ouviu o recado e mais uma vez riu. Estava contente!
Chegou o homem e aproximando-se do Tonho, abraçou-o e disse-lhe: Sabes que a rapaziada tem sentido muito a tua falta, lá por cima. Eu, achei que queria conhecer outras terras e estendi-me até aqui. Não estou arrependido; há aqui gente muito boa e amiga dos pobres.
E a melhor surpresa: encontrei um amigo, não é verdade?!...
O Tonho ia olhando para ele, baixando os olhos, voltando a olhar e parecia estar até a gostar. Mas quando o pedinte lhe perguntou porque se tinha ido embora, agitou-se e abanou a cabeça em sinal de desagrado, balbuciando: senti que ia ter “acidente” e fugi.
Estive escondido numa buraca lá na serra até passarem os sinais e depois meti-me numa camioneta que estava lá e vim ali para a nossa estrada.
Ninguém me fez mal; eu gostava muito da malta, mas agora quero ficar aqui e, olhando para o pai, calou-se. Ficou cabisbaixo e deixou que os outros continuassem a falar.
Só se levantou quando viu que o colega estava a comer pouco para se chegar junto dele e fazer gestos para que comesse muito, pois não queria que ficasse com fome.
Ao outro dia o mendigo seguiu o seu caminho e o Tonho continuou no dia a dia de todos os dias, acompanhando os pais e irmãos para as hortas.
O pedinte voltou a passar mais vezes e sempre ceava lá em casa e dormia no palheiro, com os rapazes.
Com o passar dos anos, a doença do Tonho foi-se agravando, os ataques vinham mais amiúde e provocavam mais incómodos, antes e depois de acontecerem.
Quando os pressentia o Tonho ficava aflito, inquieto e com sinais de ansiedade e sofrimento, até que numa dessas vezes, desatou a fugir e foi-se esconder numa gruta do penedo da ladeira dos brejos.
Quando foram no seu encalço, eram já abundantes os sinais de sangue na entrada da caverna e, lá dentro, estava deformado e com aspecto de grande sofrimento, depois de lutar contra a morte, o cadáver do Tonho Rosa.
O pedinte dos lados lá de cima, como ficou conhecido na terra, continuou a passar e a cear na casa dos pais do Tonho, indo de seguida dormir no palheiro.
Porém, nunca saía de ao pé da mesa sem pedir um Padre-nosso, pela alma daquele inocente que, segundo as suas próprias palavras, Deus já Lá tinha….
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