Passava todos os meses, com o alforge ao ombro, um pau na mão direita e uma cabaça atada, com um nastro muito surrado, ao cordão que lhe servia de cinto e acertava as calças à cintura, muito subida.
Não me lembro de vê-lo calçado e as calças, curtas, deixavam os pés, tornozelos e parte das canelas a descoberto.
A jaqueta, desabotoada, destapava a camisa, bastante mais asseada que a da maioria dos pedintes que transitavam pela terra.
Juntando este asseio, acima da média dos mendigos, ao cabelo curto e lavado e à barba, semanalmente cortada, estávamos na presença de alguém que destoava no seu meio.
As aldeias mais a poente do concelho de Mação, todo o norte das terras de Alcaravela e o termo de Vila de Rei, até ao Codes, eram percorridos, regularmente, pelo Ti’ Tonho, vulgarmente chamado, nos locais em que esmolava, por pobre da cabaça.
Era estimado por uns e ignorado por outros; porém o seu modo de pedir esmola não deixava ninguém indiferente.
Falava mansamente e sabia pôr sentimento no que dizia: invocava, invariavelmente, “as alminhas de quem lá tem”, “para desconto dos seus e nossos pecados”, e, para terminar, um Pai Nosso…
Com estes processos, repetidos anos a fio, era, de certeza, quem arrecadava as melhores esmolas, não se ficando pelo naco de pão, mão cheia de batatas, bocadito de toucinho, ou peça de fruta e passas de figo; recebia alguns enchidos, umas pingas de azeite, para a cabaça, e alguns cobres – desde um a cinco tostões.
Comia, todos os dias, almoço, jantar e ceia, das panelas de determinadas casas, junto das malhadas onde pernoitava.
No alforge, estraçalhado sobre o ombro direito, guardava os víveres que ia recebendo.
Como não cozinhava, quase tudo o que ia recebendo era reduzido a dinheiro, nas tabernas das terras.
Ao lado do bornal, numa pequena carteira de pele preta, muito polida, guardava um ou dois livros e uns papéis, que relia regularmente e de cuja leitura nada referia, mau grado os sinais, evidentes, de satisfação.
Corriam histórias, ditas em surdina, de boca em boca, sobre o pobre da cabaça, a sua vida afectiva, suas origens, percurso social e tudo acabava no conteúdo, desconhecido, dos papéis que guardava no bornal.
Desde professor, caído em desgraça devido à paixão por uma aluna, a juiz expulso por erro grave num julgamento, passando por foragido e refractário ao serviço militar e ex-membro da legião estrangeira, nas guerras de Espanha, tudo era ligado à personagem.
Porém, uma coisa era certa: não havia quem lhe passasse o pé no jogo do pau. Todos os que se lhe tinham oposto acabaram cobertos de bordoadas e não voltaram a desafiá-lo.
Apareceu, um dia, outro pedinte, na taberna do Casal Velho, que, ao encarar o pobre da cabaça, ficou como que fulminado.
Olharam-se os dois e, contracenando com a calma e serenidade do Ti’ Tonho, o desconhecido entrou em transe e tremia, como varas verdes, segundo a expressão de quem assistiu.
Após alguns momentos em silêncio o pobre da cabaça continuou sereno, fitando o homem que tinha na frente; em contrapartida, o outro pedinte parecia querer dizer qualquer coisa sem poder, sucediam-se-lhe, cada vez com mais frequência, os nós na garganta e as convulsões sacudiam-lhe todo o corpo.
Pouco tempo depois, caiu de joelhos e ficou prostrado no sobrado da taberna; estava morto.
Disse ainda quem viu, que o pobre da cabaça, sereno, fleumático e calmo, ajoelhou junto do cadáver, fechou-lhe os olhos convulsionados e esbugalhados, levantou os olhos ao céu e, sem dizer palavra, pareceu fazer uma oração fúnebre, findo o que se retirou para a malhada, despedindo-se dos presentes, com as seguintes palavras: a justiça e misericórdia de Deus são implacáveis e insondáveis – grande Juiz que para castigar não precisa pau, nem pedra.
Questionado por populares, autoridades e outros pedintes, o pobre da cabaça não acrescentou nada. Apenas se remeteu ao silêncio sobre aquele estranho caso.
Todas as testemunhas afirmaram que ninguém tocou no homem, ou lhe disse qualquer coisa.
O cadáver, considerado desconhecido, foi mandado enterrar pela Junta de Freguesia, no cemitério de Alcaravela.
E o mistério… virou lenda.
sábado, 27 de junho de 2009
terça-feira, 16 de junho de 2009
O penedo das Taliscas
O penedo das Taliscas, ou penedo rachado, tinha fama de tudo e proveito de nada.
Dominava o alto da Ladeira do Brejo e era formado por um aglomerado de grandes pedras que, se um dia tivessem sido objecto de estudo aprofundado, teriam, pela certa, sido sepultura de remotos antepassados.
E, com um pouco mais de boa vontade, ter-se-iam feito escavações para descobrir os fundamentos de um castro, encimando o vale exuberante e pródigo de verduras e águas potáveis…
Mas o que era, de facto, era um covil de lobos e raposas, no tempo em que uns e outras habitaram a região. Depois, com as desarborizações, as queimas e o retirar de pedras, nem coelhos, ou lebres, por lá andariam. Coisas dos tempos!...
Uns cem metros abaixo do penedo, já perto da ribeira, passava a rodeira, diariamente seguida pelo moleiro, quando se dirigia para a azenha do Vale do Corisco e, em sentido oposto, quando, já sobre a manhã, com os taleigos cheios de farinha, em vez de grão, subia, de regresso ao povoado, até às casas dos fregueses.
Na azenha não se acabava a aguardente, na cabaça, que levava um pouco mais de litro e meio e era comprada como tal, na voz do taberneiro que deixava sempre uma boca, cada vez maior, segunda queixa do moleiro.
Depois, de golo em golo, em menos de uma semana, ia-se a aguardente da cabaça e lá voltava o Ti’Manel a trazê-la, para fazer a recarga e voltar com ela para a azenha.
Não raras vezes, o excesso de pinga, trazia ideias brilhantes ao cérebro do Ti’Manel.
Iluminações essas que depois divulgava, na taberna, quando outras fontes, à base de vinho, espevitavam a criatividade e soltavam a língua do moleiro.
A maior parte já nem ligava ao que o moleiro ia contando.
Então, contava ele, que ainda há uns dias, aquilo, lá em riba, no penedo das Taliscas, foi o diabo: havia lume por todo o lado, berros e gritarias, pedras a rolar umas sobre as outras e, certamente, o Demónio que comandava toda aquela algazarra, largava pachouvadas pela boca fora, de fazer corar o menos santo dos ouvintes.
Até o macho, ajoujado sob a carga, parou, para presenciar aquelas cenas, enquanto o dono aproveitava uma barreirita do caminho, para se aliviar, lançando fora, uma espécie de revolta que lhe ia no estômago.
De repente acalmou-se tudo e só já deu pelo carriço a comer qualquer coisa aos seus pés.
Olhem, foi encolher os ombros, dar uma cacheirada no macho e arrancar ladeira a cima.
Aí, entrou o Ti’Diogo, que havia muitos anos, passava com regularidade na Terra, esmolando e chegando mesmo a dar umas jornas a quem lhe pedisse, antes de seguir o seu caminho para a aldeia seguinte.
Atrás dum copo, atirou ao moleiro:
Mas olhe cá, oh! Ti’Manel, não teria bebido umas goladas a mais, para esvaziar a cabacita e trazê-la para encher?
Não terá sido no dia da trovoada que esteve brava ali para os lados de Alcaravela e os relâmpagos, por trás do penedo, pareciam incendiar tudo?
Não terá mandado parar o macho, para se aliviar e lançar fora?
E o carriço, com a barriga a dar horas, não terá aproveitado o que o dono deitou fora, para comer qualquer coisa?
E, até podia esconder-se, lá no penedo alguma raposa, ou gato bravo que, no contra luar lançassem brilho dos olhos e lhe dessem, a vomeçê, visões?
Eh! Diabos!... O Ti’Diogo é capaz de ter toda a razão, disse o moleiro.
Pensando bem, só vejo essas coisas nos dias em que me distraio e abuso da cabacita.
É capaz de estar certo, homem de Deus, mas olhe que nunca ninguém me tinha explicado essas coisas, com tanta clareza.
E, fazia-me espécie por que raio o macho e o cão paravam sempre ali naquele sítio. Era afinal onde eu mandava, para fazermos um pequeno descanso e retomar forças para o resto do caminho.
Oh! Manel, deita lá mais uns copos, que o raio do homem bem os merece. Foi até hoje a única pessoa capaz de me abrir os olhos e explicar-me tudo.
E, não se esqueça, Ti’Diogo, de passar lá pela azenha, quando andar por aquelas bandas.
Poderemos subir lá a riba, ao penedo e, pela certa, junto a algum covil de coelhos, encontraremos as caganitas e pouco mais.
Apareça, homem!... Lá o espero!.....
Dominava o alto da Ladeira do Brejo e era formado por um aglomerado de grandes pedras que, se um dia tivessem sido objecto de estudo aprofundado, teriam, pela certa, sido sepultura de remotos antepassados.
E, com um pouco mais de boa vontade, ter-se-iam feito escavações para descobrir os fundamentos de um castro, encimando o vale exuberante e pródigo de verduras e águas potáveis…
Mas o que era, de facto, era um covil de lobos e raposas, no tempo em que uns e outras habitaram a região. Depois, com as desarborizações, as queimas e o retirar de pedras, nem coelhos, ou lebres, por lá andariam. Coisas dos tempos!...
Uns cem metros abaixo do penedo, já perto da ribeira, passava a rodeira, diariamente seguida pelo moleiro, quando se dirigia para a azenha do Vale do Corisco e, em sentido oposto, quando, já sobre a manhã, com os taleigos cheios de farinha, em vez de grão, subia, de regresso ao povoado, até às casas dos fregueses.
Na azenha não se acabava a aguardente, na cabaça, que levava um pouco mais de litro e meio e era comprada como tal, na voz do taberneiro que deixava sempre uma boca, cada vez maior, segunda queixa do moleiro.
Depois, de golo em golo, em menos de uma semana, ia-se a aguardente da cabaça e lá voltava o Ti’Manel a trazê-la, para fazer a recarga e voltar com ela para a azenha.
Não raras vezes, o excesso de pinga, trazia ideias brilhantes ao cérebro do Ti’Manel.
Iluminações essas que depois divulgava, na taberna, quando outras fontes, à base de vinho, espevitavam a criatividade e soltavam a língua do moleiro.
A maior parte já nem ligava ao que o moleiro ia contando.
Então, contava ele, que ainda há uns dias, aquilo, lá em riba, no penedo das Taliscas, foi o diabo: havia lume por todo o lado, berros e gritarias, pedras a rolar umas sobre as outras e, certamente, o Demónio que comandava toda aquela algazarra, largava pachouvadas pela boca fora, de fazer corar o menos santo dos ouvintes.
Até o macho, ajoujado sob a carga, parou, para presenciar aquelas cenas, enquanto o dono aproveitava uma barreirita do caminho, para se aliviar, lançando fora, uma espécie de revolta que lhe ia no estômago.
De repente acalmou-se tudo e só já deu pelo carriço a comer qualquer coisa aos seus pés.
Olhem, foi encolher os ombros, dar uma cacheirada no macho e arrancar ladeira a cima.
Aí, entrou o Ti’Diogo, que havia muitos anos, passava com regularidade na Terra, esmolando e chegando mesmo a dar umas jornas a quem lhe pedisse, antes de seguir o seu caminho para a aldeia seguinte.
Atrás dum copo, atirou ao moleiro:
Mas olhe cá, oh! Ti’Manel, não teria bebido umas goladas a mais, para esvaziar a cabacita e trazê-la para encher?
Não terá sido no dia da trovoada que esteve brava ali para os lados de Alcaravela e os relâmpagos, por trás do penedo, pareciam incendiar tudo?
Não terá mandado parar o macho, para se aliviar e lançar fora?
E o carriço, com a barriga a dar horas, não terá aproveitado o que o dono deitou fora, para comer qualquer coisa?
E, até podia esconder-se, lá no penedo alguma raposa, ou gato bravo que, no contra luar lançassem brilho dos olhos e lhe dessem, a vomeçê, visões?
Eh! Diabos!... O Ti’Diogo é capaz de ter toda a razão, disse o moleiro.
Pensando bem, só vejo essas coisas nos dias em que me distraio e abuso da cabacita.
É capaz de estar certo, homem de Deus, mas olhe que nunca ninguém me tinha explicado essas coisas, com tanta clareza.
E, fazia-me espécie por que raio o macho e o cão paravam sempre ali naquele sítio. Era afinal onde eu mandava, para fazermos um pequeno descanso e retomar forças para o resto do caminho.
Oh! Manel, deita lá mais uns copos, que o raio do homem bem os merece. Foi até hoje a única pessoa capaz de me abrir os olhos e explicar-me tudo.
E, não se esqueça, Ti’Diogo, de passar lá pela azenha, quando andar por aquelas bandas.
Poderemos subir lá a riba, ao penedo e, pela certa, junto a algum covil de coelhos, encontraremos as caganitas e pouco mais.
Apareça, homem!... Lá o espero!.....
quinta-feira, 4 de junho de 2009
O Ti’Artur
Ao tempo, o ti’Artur era homem de trinta e poucos anos e vivia no Carvoeiro, onde sempre viveu, até que, prematuramente, traído pelo fígado, se foi embora.
Casou com a ti'Conceição, que namorou e conseguiu trazer dos lados de Proença, duma aldeia chamada Galisteu.
A regente escolar, deixou tudo para se dedicar ao marido e filhos, que começaram a surgir logo após o casamento.
Primeiro uma menina, a seguir o Manelito, que ainda estou a ver, muito ranhoso e choroso, atrás da mãe, que se desdobrava a tratar dele e a aviar os fregueses da loja, nos baixos da casa.
Homem de sete ofícios e amigo de toda a gente, podia amedrontar quem o não conhecesse.
Estava farto de perseguições de polícias e fiscais, que seguiam de perto o contrabando, em que se ocupava o ti’Artur.
Por trás de um imponente bigode, escondia-se um coração de enorme grandeza. No primeiro o ti’Artur tinha muito orgulho, no segundo, como aliás no resto do corpo, nem pensava.
Com o seu ar de “ciganão”, negociava em tudo. Não escondia de ninguém a sua atracção por tudo que cheirasse a risco e a aventura. Tinha enorme prazer em vender “à socapa” cortes de bombazina, garrafas de Domecq, perfumes Tabu e cartas espanholas. Também nunca faltavam caramelos de “nuestros hermanos”.
Era o taxista da terra e nunca recusava um serviço, salvo se estivesse ausente, ou tivesse abusado da bebida e já se encontrasse no seu “estado normal”. Tinha respeito pelos clientes – bêbedo, não conduzia o táxi -, mas nunca se coibia de andar de mota.
A “Triumph” era um dos seus encantos. Era uma das coisas que mais estimava. Fazia gala de percorrer a estrada, desde o Vale de Santiago até à Sanguinheira, quase todos os fins de tarde, com escape quase livre, camisa aberta e satisfação estampada no rosto.
Toda a gente abria caminho, à mota do Artur.
Nas várias férias que passei no Carvoeiro, tive o privilégio de ser mais um dos amigos do ti’Artur, como eu carinhosamente lhe chamava; ao que ele retribuía, apresentando-me como o “sobrinho Zeca”.
Demos muitos passeios, na mota, e nunca tivemos percalços, de maior. Com companhia, era cauteloso; para além de ser um excelente condutor.
A casa do velho Cavaco, onde eu ficava aboletado, era próxima da loja e um pouco ao lado da estação dos correios, onde a Zita – hóspede da casa do ti’Artur - era encarregada. O meu tempo dividia-se, entre a loja e os correios.
A respeito dos dois pólos de atracção dos meus dias, o velho Cavaco, que ganhara a vida de terra em terra, como capador, tinha as suas prosas e dava as suas recomendações:
Vais para casa do Artur namorar a filha do “Zaranza da Feteira”; é das coisas mais bonitas que por aí se encontram, mas tanto quanto sei, é dois ou três anos mais velha e sabe muito mais que tu - todo o cuidado é pouco!...
O Artur é um homem bom, muito habilidoso nos negócios, mas com a pinga, perde-se!...Isso é mau, além de que perde o respeito por si próprio e até pelos que lhe são mais chegados: mulher e filhos.
Vai com ele para onde quiseres; és bem formado e estou seguro que nada de mal te poderá acontecer. Porém, não andes com ele bêbedo em cima daquela mota e evita pegar em qualquer coisa de menos legal, que tenha em casa.
Sempre fez gala de brincar com os guardas e os fiscais, mas há-de queimar-se um dia – e nessa altura arrastará alguém -.
Na altura pareceram-me duros e até injustos, os conselhos do Ti’Cavaco; todavia, à distância dos anos e dos factos, é com o maior carinho e gratidão que relembro cada palavra, de sabedoria, dum velho amigo.
Nunca me arrependi de ser amigo do Ti’Artur e das muitas horas de prosa que tive com a Maria Luísa, dos correios – a Zita -, mas nada posso criticar nas recomendações do meu velho hospedeiro.
Nos meses de Agosto, o Carvoeiro era um autêntico entreposto das mais variadas gentes, vindas de todos os pontos do mundo: do Brasil, Venezuela, América, África do Sul, Congo Belga, colónias e países da Europa.
Com enorme gosto e imensa curiosidade, escutava as histórias de cada um – aventuras e desventuras, sucessos e azares, verdades e mentiras-.
O ti’Artur reparou no interesse e sofreguidão com que eu escutava e perguntava tudo o que dissesse respeito ao longínquo, as considerações que fazia, baseado nos estudos da Geografia e a maneira como aguentava conversas com quem eu nunca vira, sobre ambientes onde nunca estivera.
Um dia convidou-me para uma pescaria, nuns pegos da ribeira do Aziral, no termo de Envendos, no limite do concelho de Proença.
Iríamos de mota até à Venda Nova e dali em diante, seguiríamos, a corta mato, até à ribeira. Saíamos ao romper da manhã e íamos encontrar o resto do grupo, ao nascer do sol.
Conhecia apenas o ti’Artur; fiquei a conhecer umas trinta e tantas pessoas, que faziam a sua vida em doze países diferentes.
Devo ter feito milhares de perguntas, posso ter sido muito maçador, não cheguei a lançar o anzol à água, mas comi muito peixe frito, grelhado e em caldeirada.
Ao anoitecer, voltámos até junto da mota e, quando chegámos ao Carvoeiro, o ti’Artur pôs-se na minha frente, e disse-me: Zeca, vê que hoje, ao contrário do habitual, não estou bêbedo.
Queria, melhor, fazia todo o empenho em arranjar uma coisa que lhe causasse o maior prazer. Sei que gosta de convívios, como o de hoje, e fiquei encantado com a maneira como se comportou no meio de tanta gente, de tão diferentes meios e com tantas coisas difíceis de aturar.
Agora quero ir consigo, junto do velho Cavaco, dar-lhe nota da maneira como o Zeca se tornou na atracção do convívio, o que muito me honrou; para além de poder mostrar-lhe que não estou sempre bêbedo.
Depois dessas férias, abracei o ti’Artur três ou quatro vezes; normalmente fazíamo-lo em silêncio e com grande cumplicidade.
Tive um choque enorme, quando soube que foi traído pelo fígado, embora não fosse, para mim, grande surpresa.
Depois da morte do ti’Artur, nunca mais senti interesse em voltar ao Carvoeiro.
Até sempre, velho amigo.
Casou com a ti'Conceição, que namorou e conseguiu trazer dos lados de Proença, duma aldeia chamada Galisteu.
A regente escolar, deixou tudo para se dedicar ao marido e filhos, que começaram a surgir logo após o casamento.
Primeiro uma menina, a seguir o Manelito, que ainda estou a ver, muito ranhoso e choroso, atrás da mãe, que se desdobrava a tratar dele e a aviar os fregueses da loja, nos baixos da casa.
Homem de sete ofícios e amigo de toda a gente, podia amedrontar quem o não conhecesse.
Estava farto de perseguições de polícias e fiscais, que seguiam de perto o contrabando, em que se ocupava o ti’Artur.
Por trás de um imponente bigode, escondia-se um coração de enorme grandeza. No primeiro o ti’Artur tinha muito orgulho, no segundo, como aliás no resto do corpo, nem pensava.
Com o seu ar de “ciganão”, negociava em tudo. Não escondia de ninguém a sua atracção por tudo que cheirasse a risco e a aventura. Tinha enorme prazer em vender “à socapa” cortes de bombazina, garrafas de Domecq, perfumes Tabu e cartas espanholas. Também nunca faltavam caramelos de “nuestros hermanos”.
Era o taxista da terra e nunca recusava um serviço, salvo se estivesse ausente, ou tivesse abusado da bebida e já se encontrasse no seu “estado normal”. Tinha respeito pelos clientes – bêbedo, não conduzia o táxi -, mas nunca se coibia de andar de mota.
A “Triumph” era um dos seus encantos. Era uma das coisas que mais estimava. Fazia gala de percorrer a estrada, desde o Vale de Santiago até à Sanguinheira, quase todos os fins de tarde, com escape quase livre, camisa aberta e satisfação estampada no rosto.
Toda a gente abria caminho, à mota do Artur.
Nas várias férias que passei no Carvoeiro, tive o privilégio de ser mais um dos amigos do ti’Artur, como eu carinhosamente lhe chamava; ao que ele retribuía, apresentando-me como o “sobrinho Zeca”.
Demos muitos passeios, na mota, e nunca tivemos percalços, de maior. Com companhia, era cauteloso; para além de ser um excelente condutor.
A casa do velho Cavaco, onde eu ficava aboletado, era próxima da loja e um pouco ao lado da estação dos correios, onde a Zita – hóspede da casa do ti’Artur - era encarregada. O meu tempo dividia-se, entre a loja e os correios.
A respeito dos dois pólos de atracção dos meus dias, o velho Cavaco, que ganhara a vida de terra em terra, como capador, tinha as suas prosas e dava as suas recomendações:
Vais para casa do Artur namorar a filha do “Zaranza da Feteira”; é das coisas mais bonitas que por aí se encontram, mas tanto quanto sei, é dois ou três anos mais velha e sabe muito mais que tu - todo o cuidado é pouco!...
O Artur é um homem bom, muito habilidoso nos negócios, mas com a pinga, perde-se!...Isso é mau, além de que perde o respeito por si próprio e até pelos que lhe são mais chegados: mulher e filhos.
Vai com ele para onde quiseres; és bem formado e estou seguro que nada de mal te poderá acontecer. Porém, não andes com ele bêbedo em cima daquela mota e evita pegar em qualquer coisa de menos legal, que tenha em casa.
Sempre fez gala de brincar com os guardas e os fiscais, mas há-de queimar-se um dia – e nessa altura arrastará alguém -.
Na altura pareceram-me duros e até injustos, os conselhos do Ti’Cavaco; todavia, à distância dos anos e dos factos, é com o maior carinho e gratidão que relembro cada palavra, de sabedoria, dum velho amigo.
Nunca me arrependi de ser amigo do Ti’Artur e das muitas horas de prosa que tive com a Maria Luísa, dos correios – a Zita -, mas nada posso criticar nas recomendações do meu velho hospedeiro.
Nos meses de Agosto, o Carvoeiro era um autêntico entreposto das mais variadas gentes, vindas de todos os pontos do mundo: do Brasil, Venezuela, América, África do Sul, Congo Belga, colónias e países da Europa.
Com enorme gosto e imensa curiosidade, escutava as histórias de cada um – aventuras e desventuras, sucessos e azares, verdades e mentiras-.
O ti’Artur reparou no interesse e sofreguidão com que eu escutava e perguntava tudo o que dissesse respeito ao longínquo, as considerações que fazia, baseado nos estudos da Geografia e a maneira como aguentava conversas com quem eu nunca vira, sobre ambientes onde nunca estivera.
Um dia convidou-me para uma pescaria, nuns pegos da ribeira do Aziral, no termo de Envendos, no limite do concelho de Proença.
Iríamos de mota até à Venda Nova e dali em diante, seguiríamos, a corta mato, até à ribeira. Saíamos ao romper da manhã e íamos encontrar o resto do grupo, ao nascer do sol.
Conhecia apenas o ti’Artur; fiquei a conhecer umas trinta e tantas pessoas, que faziam a sua vida em doze países diferentes.
Devo ter feito milhares de perguntas, posso ter sido muito maçador, não cheguei a lançar o anzol à água, mas comi muito peixe frito, grelhado e em caldeirada.
Ao anoitecer, voltámos até junto da mota e, quando chegámos ao Carvoeiro, o ti’Artur pôs-se na minha frente, e disse-me: Zeca, vê que hoje, ao contrário do habitual, não estou bêbedo.
Queria, melhor, fazia todo o empenho em arranjar uma coisa que lhe causasse o maior prazer. Sei que gosta de convívios, como o de hoje, e fiquei encantado com a maneira como se comportou no meio de tanta gente, de tão diferentes meios e com tantas coisas difíceis de aturar.
Agora quero ir consigo, junto do velho Cavaco, dar-lhe nota da maneira como o Zeca se tornou na atracção do convívio, o que muito me honrou; para além de poder mostrar-lhe que não estou sempre bêbedo.
Depois dessas férias, abracei o ti’Artur três ou quatro vezes; normalmente fazíamo-lo em silêncio e com grande cumplicidade.
Tive um choque enorme, quando soube que foi traído pelo fígado, embora não fosse, para mim, grande surpresa.
Depois da morte do ti’Artur, nunca mais senti interesse em voltar ao Carvoeiro.
Até sempre, velho amigo.
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