domingo, 8 de fevereiro de 2009

O colégio

As primeiras décadas do século XX deixaram o País num estado de desenvolvimento muito longe do aceitável; não tivemos guerra dentro das nossas fronteiras mas sofremos as incidências dos grandes conflitos mundiais e demorámos demasiado tempo a livrar-nos das sequelas e das chagas sociais deles resultantes.

O nosso concelho, bem no centro de Portugal, era atravessado por duas estradas de macadame, que a certa altura se juntavam numa só, em forma de ípsilon.

Delas irradiavam os caminhos municipais, normalmente de terra batida e com as rodeiras, profundas, das rodas das carroças.

No verão montanhas de poeira e no Inverno charcos e lama, em abundância.

O sistema de ensino público era garantido, até à quarta classe, por escasso número de escolas, complementado com postos escolares que acabavam por cobrir quase todas as aldeias e mesmo lugarejos.

Porém as motivações para estudar eram praticamente nulas.

Nas aldeias raramente se via um automóvel, salvo o do médico, padre ou veterinário e os caminhos impediam, completamente, na época das chuvas, o acesso a muitas localidades.

Passavam as camionetas para retirar a madeira e a resina, mas carro ligeiro, que se aventurasse, era certo e sabido que teria que ser rebocado de algum atoleiro.

As bestas, com cangalhas, alforges ou carroças, eram, na prática, os mais fiáveis e comuns meios de comunicação.

O telefone e a electricidade eram bens raros.

A água corria nas fontes, de bica ou de mergulho e era muito generalizado o recurso aos poços de cada um.

Estas circunstâncias, acrescidas da falta de dinheiro em circulação, facilitavam a filosofia oficial do Governo que defendia a agricultura de subsistência, a instrução básica como suficiente para a generalidade dos homens, já que às mulheres se reservava o papel de mãe de família, sem necessidade de alfabetização, sem direito a voto e sem necessidade de trabalhar fora do lar.

Os trabalhos do campo, uns lugares na tropa, forças de polícia, empregados públicos dos graus inferiores e serventia, quer nas obras públicas, quer nas casas dos senhores, eram o destino de quem tinha padrinhos ou parentes a quem se ofereciam as primícias das colheitas, os cabritos, garrafões de azeite e presuntos.

Mesmo as casas abastadas das aldeias, com as arcas a abarrotar de cereais, as pipas cheias de vinho, as talhas repletas de azeite e de mel, não tinham dinheiro, nem informação, para quebrar a inércia.

Só os mais lúcidos, os que tinham quem os incentivasse, oferecendo-se para receber nas cidades os filhos de algum parente que quisesse seguir estudos, mandavam os filhos estudar.

Estas perspectivas não eram nada animadoras para a juventude dos anos quarenta e cinquenta; os liceus mais próximos ficavam nas sedes de distritos – Santarém, Leiria, Portalegre e Castelo Branco -, as escolas técnicas ainda não tinham aparecido e os poucos colégios eram distantes e caros.

Restava o recurso aos Seminários, quer diocesanos, quer das Ordens Religiosas e não esqueçamos a grande ajuda que deram a muita gente que sem esse recurso, nunca teria acesso à instrução e educação.

Foi nessa altura que apareceram os colégios particulares e com eles a grande democratização do ensino; quase todas as aldeias do concelho mandaram os primeiros estudantes para Mação, Sardoal, Mouriscas e Abrantes, entre outras localidades.

Porém, passados poucos anos, quando essa plêiade de jovens deveria continuar os estudos para níveis superiores, rebentam as guerrilhas nos territórios ultramarinos.

Ora a maioria dos jovens das classes mais baixas não dispunha de meios nem de influências para se safar das comissões no ultramar.

Por norma educados em ambientes conservadores, aderentes aos princípios do respeito pela família, pela hierarquia social e do culto pela Pátria, não fugiram às suas obrigações e pagaram-no bem caro.

Muitos interromperam cursos para não mais os terminar, outros morreram ou ficaram marcados pelas mais diversas deficiências e vidas com um rumo e expectativa social não raro foram orientadas para caminhos diferentes.

Não me parece pertinente a emissão de juízes de valor sobre a vida profissional do homem que veio para a nossa terra e nela fundou o colégio – o Prof. Anastácio Nogueira Lalanda –.

Sou um dos indefectíveis defensores da sua acção, em prol da juventude do meu tempo e relevo, facilmente, alguns métodos e meios que usava, quando os comparo com os benefícios que a sua acção trouxe a centenas de jovens, condenados à nascença a uma condição social anquilosante.

Em seis anos, nunca experimentei o peso físico e psicológico da régua ou das mãos do senhor Lalanda.

Mais tarde, já professor, falei várias vezes com o senhor Lalanda e confesso que são grandes, enormes mesmo, os créditos que lhe atribuo e socialmente notáveis as acções que desenvolveu na ajuda a muita gente.

Para mim, a sua figura destaca-se, claramente, como uma das mais marcantes do nosso concelho, no último século.

Homens desta estirpe, que cultivaram e desenvolveram a nossa matéria-prima mais valiosa –as pessoas –, merecem ter o seu nome perpetuado e a sua figura presente em qualquer lugar destacado do concelho.