sábado, 28 de junho de 2008

Prólogo

As “histórias de gente simples”, que se seguem, não são obra de um especialista em Sociologia; são casos arrancados à vida, que povoam o imaginário do autor, observador atento de uma infância feliz, vivida na aldeia beirã1 em que nasceu.

Os traços fundamentais são obra da Natureza; os condimentos das histórias, a súmula da vida rural nas décadas medianas do século vinte. A ficção é, todavia, a coluna vertebral de todo o trabalho – é possível, e até provável, que uma ou outra coincidência, com esta ou aquela pessoa, possa levar o leitor a ver factos reais, onde nada mais há que imaginação –.

Tal como Dom Quixote, que via monstros e guerreiros heróicos onde o Sancho apenas vislumbrava moinhos de vento, também nós, nos excedemos, por vezes, ao arquitectar histórias de camaradas, que o destino juntou um dia, numa companha do Alto Alentejo.

A intenção – para nós essencial – é boa; isso podemos garantir. Pretendemos mostrar aos mais novos e relembrar aos mais vividos, que foram os adultos, daquela época, que caldearam as grandes transformações da Sociedade, dando forma, e fundamento, ao tipo de vida da actual geração.

Na segunda metade do século passado o País despertou; acordou de um longo letargo em que estivera mergulhado. Foram duas Guerras Mundiais, que muito exigiram, sobretudo aos mais humildes – como sempre – e, paralelamente, cá dentro, um regime de força e vistas curtas, importante para consumo interno, mas absolutamente desajustado do que se passava lá fora, no resto do Mundo.

A Beira Baixa e todo o centro do País, vivia dos trabalhos no campo. As gentes, rijas e duras, não ficavam mal, quando se lhes pedia mais que o engenho necessário para os habituais trabalhos de lavoura. Dominavam, muito bem, as tarefas da azeitona, da ceifa, da monda, da poda, da enxertia e dos trabalhos com madeira. Aprendiam, com relativa facilidade, qualquer ofício.

Os beirões que partiram para as Áfricas, Américas e outros pontos mais longínquos da Terra conhecida, singraram na vida; quando, um dia, voltaram para a sua terra, traziam algo de seu, falavam sempre com muita saudade do que deixavam e manifestavam muita satisfação pelo dever cumprido.

Antes de passarmos à análise de cada personagem, deitemos um olhar à cultura da época e ao obscurantismo nessas terras e gentes. Poucos completavam a instrução primária e, só alguns, desses poucos, iam para os Seminários, ou para uma cidade, onde tinham familiares, para o liceu.

Um exemplo, pouco edificante, é o da aldeia onde nascemos: até ao fim dos anos cinquenta não referenciamos qualquer indivíduo formado. Os colégios particulares apareceram, na zona, nos anos quarenta e cinquenta; fez-se luz e começou a abertura ao mundo. Passou a valer mais um curso do que uma courela; as raparigas deixaram de estar votadas a simples parideiras de filhos e substitutas do homem, nas lides agrárias, quando este se fazia à vida, fora da terra.

Nas décadas de setenta e oitenta a sociedade foi abalada por grandes transformações; a “inteligência” que se vinha acumulando e a força capitalizada na mudança de regime político, deram ao povo a dimensão mais correcta das coisas humanas. De repente, toda a vida mudou e até as ceifas, que inspiraram estas histórias, deixaram de exigir o esforço, sobre-humano, que, ao homem, era exigido.

Olhar para os tempos da nossa meninice, abstrair do stress – neologismo usado para definir muitas coisas que naqueles tempos não existiam – e recordar o que nos parece cada vez mais distante, é, tão só, o nosso objectivo.

Que as “histórias de gente simples” que se seguem, sejam úteis a quem as ler e valham mais que os calmantes, ou outros tratamentos, que o “marketing” impôs às sociedades hodiernas, são o nosso único e sincero desejo.

Humildemente, mas com toda a força e sensibilidade – como diria o melhor dos beirões – deixamos esta pequena obra como uma sentida homenagem àquele que um dia, afirmou, perante os “velhos do Restelo”, lá da pequena aldeia, que a única coisa que queria da vida era que os seus netos viessem a ser muito mais que ele era.

1 A aldeia da Serra, no concelho de Mação, situa-se no limite das terras de Sardoal, freguesia de Alcaravela. Chegou a ter 500 habitantes, em mais de cem fogos. Enquadra-se no limite norte do Distrito de Santarém e pertencia à antiga Província da Beira Baixa. Ali começa a Zona do Pinhal e os costumes e usos são uma amálgama de Ribatejo, Beira Baixa e Alentejo. Recentemente tem-se desenvolvido graças às residências de segunda habitação, de famílias de aposentados, da Terra e de fora.

3 comentários:

Anónimo disse...

Histórias de raça e de fibra do tempo em que os homens só tiravam o chapéu para entrarem na Igreja.
Linguagem apuradíssima na linha camiliana e que já são poucos os que dela guardam lembrança e muito menos os que se atrevem a reescrevê-la.
Mas do meu primo eu esperava isto
Bem-hajas
Quina

quina disse...

Histórias de gente honrada que não vergava, que só tirava o chapéu para entrar na Igreja. Linguagem camiliana de que já poucos se lembram e aqui reenventada com mestria...mas do meu primo eu esperava isto.
Continua a deliciar-nos
Quina

Anónimo disse...

Caro Amigo José Marques Valente,
Tenho procurado seguir estas “Histórias de gente simples”, desde a criação deste espaço, por falta de tempo ainda não tinha feito nenhum comentário.
Quero começar por lhe dar os meus sinceros parabéns pela iniciativa e por partilhar estas deliciosas histórias, algumas delas eu tinha já a felicidade de conhecer, pois aos momentos de prazer que a sua companhia e da sua família sempre proporcionam foram sempre acrescentados não só as excelentes iguarias, algumas com origem na região aqui retratada, os deliciosos néctares, alguns com mais anos de garrafa do que os que eu tenho de vida, mas também algumas destas com que aqui nos presenteia.
Tenho que lhe confessar que apesar da muita oferta de informação hoje disponível na internet, e das várias áreas do meu interesse que na rede habitualmente consulto, este espaço já faz parte dos que prefiro não só para aliviar do stress, como para nele encontrar uma tranquilidade emocionante.
Parabéns e obrigado!
Um abraço,
António Medeiros