domingo, 29 de junho de 2008

Ti' Chico "Manajeiro"

Naquele ano choveu até tarde; já Abril ia bastante alto e caíam, com alguma regularidade, bátegas de água, de se lhe tirar o chapéu. Gozavam os lameiros, os riachos e as nascentes, assim como a mata e o mato. Os juncos da ribeira nunca estiveram tão farfalhudos.

As vinhas, já bem compostas, sofriam com o “chove-que-faz-sol”, pois, nestas alturas, não há enxofre e sulfato de cobre que espantem o oídio e o míldio, que darão cabo de uma boa parte da safra da vindima.

O Ti Chico pensava noutra; olhava para o céu, de manhã, quando se levantava e deixava-se levar, voando com o pensamento, por essas terras alentejanas, farejando nas chapadas de seara, do termo de Barbacena, onde havia de ir, com a sua companha, ceifar todo aquele trigo, aveia e cevada, na herdade do “Castanho”, lá para os lados de Santa Eulália, no Alentejo Alto.

Interrogava-se sobre o que sucederia a tanta palha; cada centímetro que o “pão” acamasse era mais uma dificuldade para os “ganhões” do seu rancho.

As pontas da “linha de corte” estavam bem seguras; o Chico Coxo dum lado e o Zé Taliscas do outro – homens de “dar mantulho”, a quem o trabalho não metia medo –. Mas... o resto?
Logo ao lado do Taliscas ia um outro “camarada” que sabia de “dobras” e, além de terror dos “manteeiros”, raramente endireitava as costas para enrolar um “paivante” de mortalha espanhola e, diabo de homem, nem precisava de beber.
Os “moços”, num total de cinco do 1º ano, três do segundo e dois do terceiro, eram a dúvida maior se o “pão” estivesse muito acamado e... chovera tanto!...

Os cuidados com os atilhos e a organização dos “rolheiros” teriam de ser redobrados; o “pão” tinha de ser junto e atado sem humidade. Os molhos eram mais pesados, porque o trigo crescera muito e todo esse peso ia sobrecarregar os braços dos homens.

Pensava o Ti Chico: reforça-se a “bóia”, fazem-se mais uns “altos”, dão-se uns gritos de estímulo e tudo vai correr bem. Ao cabo dos 40 dias da companha vou recompensar todos os camaradas e até os moços; o senhor Lavrador vai ajudar – vou pedir-lhe mais dois contos de réis e darei mais dez tostões, por dia, a cada “camarada” e uma lembrança aos “moços”.
Depois planeou a estratégia para formar a companha, que, desde os tempos do seu pai e avô, sempre deitara brado, nas freguesias da redondeza.

Na saída da missa, do último domingo, apareceu um outro manajeiro, de fora da terra, a fazer negaças a alguns camaradas do Ti Chico e, nestas coisas, mais vale prevenir que... acordar tarde. Espalhou-se a notícia que o Lavrador de Barbacena chamara já o Ti Chico e que ele até conseguira um dinheirinho extra para aquele ano; estava, pois, tudo seguro e todos confiavam no seu manajeiro, de sempre, que até já fora encarregado de pais, irmãos e filhos de muitos.

Os “moços” eram como que o fiel da balança; tanto no que se refere a desempenho como no que ajudavam – porque recebiam menos – a compor o quinhão dos camaradas. E com dez moços a companha estava muito bem equilibrada, ainda que alguns já fossem meios camaradas.

Dos trinta e nove pensados pelo Ti Chico, trinta e sete já tinham apertado a mão. Faltava o “Gaitinhas” e o “Manel Carolo”. Era seguro que não se tinham comprometido com mais ninguém, mas os filhos a chamar, lá de Lisboa – para as obras do hospital grande -, poderiam fazer mossa. Havia que resolver o problema.

No domingo seguinte toda a gente já dizia que o Ti Chico, que nunca os deixara ficar mal, tinha sabido negociar bem a companha: além de mais uns contos de réis, havia uns litros de gravanços e feijão preto, para distribuir por todos; é manajeiro para nos defender – ouvia-se no adro da igreja.

O “Gaitinhas” e o “Manel Carolo”, estavam de prosa, à saída da missa, num canto do adro. Sem saberem como, aparece o Ti Chico, de mão estendida, dizendo que já os tinha procurado, mas era agora altura de se acertarem as coisas. E acrescentou, – como raposa velha, que todos reconheciam – se assim entenderem!...

Não restavam muito mais companhas ao Ti Chico. Homem na casa dos sessenta, a quem o estômago e os ossos não ajudavam muito, deveria dar o lugar a outro, como ele já dizia há anos. A este respeito, falava-se à boca pequena no seu sobrinho – o “Truta” –, que tinha esperanças de vir a suceder ao tio. A maioria, porém, se não a totalidade dos habituais camaradas, iam pensando e confiavam que o Ti Chico nomeasse o Manel Carolo, homem sanhudo e rijo, de poucas falas e riso raro, amigo do seu amigo. Forte como um touro e dócil como uma pomba, era, há mais de vinte anos, o “eixo da companha” e, ali onde o viam, tinha levado ao colo muitos aprendizes e até homens feitos, que estivessem em maus dias.

Na Terra era homem de poucos haveres, mas muito orientado e que raramente aceitava jornas; “trabalho no que é meu, e ajudo no que é dos outros, quando me pedem”. A ganhar, só na ceifa e numa ou outra “azeitona”. Os dois filhos e a filha, casados, trabalhavam fora. Ao que constava, o avô não se cansava de incentivar os filhos para que mandassem estudar os netos, não interessava o quê, desde que viessem a ser mais que pais e avô.

As razões do Carolo não ter vindo ainda a si, conforme confessou ao Ti Chico, eram as inquietudes da vida e aquele cismar na volta a dar aos seus netos, todos a acabar a escola primária. Mas, cerrando os dentes, estendeu o braço e apertou, com força e sentimento, a mão do Ti Chico.

Imediatamente, e sem dizer palavra, o Gaitinhas fez o mesmo. Depois, baixou os olhos e confirmou o garoto mais novo, como aprendiz do 1º ano. Estava composto o naipe de 40 trabalhadores, mais o manajeiro, que havia de partir para terras do Alentejo, nos primeiros dias de Junho.

Em Maio, o Ti Chico foi a Fátima. Rezou e meditou na vida, pedindo por seus familiares e seus homens e aconselhando-se muito com Nossa Senhora, de quem era profundo devoto. Desde a aparição não faltara a um único 13 de Maio, em Fátima. Ia também, muitas vezes, em Outubro, com a mulher e filhos.
Antes de partir, entrou numa loja e comprou quarenta e cinco terços, que mandou benzer a um padre que estava de serviço.

Como estava combinado, no último domingo de Maio, juntou-se toda a companha na eira do Ti Chico, lá no cimo do Casal. Foram chegando todos, havia conversas de ocasião e o cenário constava de um cesto de pão alvo - de trigo -, cozido no dia antes, um presunto inteiro pendurado, um grande prato de queijos, um barranhão de azeitonas e uma cambalhota de chouriços. Sem faltar, é claro, um pipo de uns trinta litros de vinho tinto. Faca, cada um usava a sua navalha e os quatro ou cinco copos iam passando de boca em boca, sendo por vezes enxaguados na água do alguidar, junto da mesa.

O Ti Chico agradeceu a todos e foi rápido nas palavras, dizendo que esperava a melhor companha de sempre – uma vez que seria a última que fazia –. Fez-se silêncio profundo e, por entre olhares, esperaram todos mais palavras do manajeiro, que apenas acrescentou:

Todos sabem que a companha está viva, é a melhor das redondezas e assim tem de continuar a ser. Precisa de um novo manajeiro, que este ano ainda irá comigo, mas na próxima, será o vosso chefe. Quero só acrescentar que, sem desmerecer todos os presentes, o camarada que me parece mais capaz que vos orientar, chefiar e defender é o Manel Carolo. Não se esqueçam que é altura de alguém dizer alguma coisa, se alguma coisa houver para dizer; pois, a partir de agora, tudo o que fizerem será para ajudar o novo manajeiro, tal como sempre fizeram comigo.

Os poucos segundos de total e absoluto silêncio foram interrompidos pelo Gaitinhas – tido como o maior crítico do Carolo – que levantou o braço e, dirigindo-se ao Ti Chico, apenas disse: “sempre assim foi e há-de ser, o que o senhor fizer, ninguém o há-de desfazer!...” E foi estender a mão ao Manel Carolo.

De novo o silêncio, e, sem que ninguém tomasse a palavra, todos foram comendo bem e bebendo melhor. O Ti Chico foi passando por todos, petiscando com este, beberricando com aquele, até que ao chegar ao “Chancas” lhe perguntou o que achava do novo manajeiro. A resposta foi curta e eloquente: há-de ser tão bom como o senhor, que me fez “homem” a mim e aos meus dois filhos, aqui presentes. É fixe!...

O Ti Chico encerrou o encontro com dizeres de circunstância, agradecendo a todos e dando os parabéns ao seu sucessor, que seria confirmado pelo senhor lavrador, na próxima ceifa, como o Manajeiro da herdade do Castanho.

Foram correndo os dias, até que, na madrugada de 4 de Junho, um domingo, todos compareceram, ao romper da madrugada, no adro da igreja, onde duas carroças carregaram a “copa” de todos os camaradas e rapazes para a levarem até à estação de Abrantes, onde apanhariam o comboio para Santa Eulália. Atrás das carroças caminhava a companha, em magotes que falavam de tudo, sem quase nada dizerem. Durante quarenta dias, seria como se o mundo não existisse, até que voltariam para as mulheres, namoradas e pais, depois do dever cumprido.

Já dentro do comboio – para alguns a primeira vez que tal viam – ouviam-se as chalaças do costume; Dizia-se aos moços que deviam conservar uma pedra na boca, para dar sorte e para o comboio não sair do caminho, e para terem atenção quando viesse o revisor, pois queria os bilhetes na testa de cada um, etc., etc..

O Ti Chico certificou-se de que tudo estava em ordem, sentou-se no banco, junto à janela e foi olhando os campos, vendo o “pão” e convencendo-se que não estava tão acamado como chegara a recear. Sem dizer mais palavras, passou as duas horas até Santa Eulália em meditação e, certamente, já com saudades.

À chegada a Santa Eulália, gritou-se para apear a companha do Ti Chico, transferiu-se a copa e acomodou-se o pessoal nas carroças que os carreiros tinham alinhado, no pequeno largo, junto da estação. Depois dirigiram-se à malhada da herdade do Castanho, no termo de Barbacena, onde havia de ser a morada da companha nos próximos quarenta dias.

Nesse primeiro dia, depois da ceia, o Ti Chico entregou um terço a cada um, orientou a oração, habitual entre os “ratinhos”, no fim das refeições – os alentejanos não tinham esse costume –, e despediu-se.

sábado, 28 de junho de 2008

Prólogo

As “histórias de gente simples”, que se seguem, não são obra de um especialista em Sociologia; são casos arrancados à vida, que povoam o imaginário do autor, observador atento de uma infância feliz, vivida na aldeia beirã1 em que nasceu.

Os traços fundamentais são obra da Natureza; os condimentos das histórias, a súmula da vida rural nas décadas medianas do século vinte. A ficção é, todavia, a coluna vertebral de todo o trabalho – é possível, e até provável, que uma ou outra coincidência, com esta ou aquela pessoa, possa levar o leitor a ver factos reais, onde nada mais há que imaginação –.

Tal como Dom Quixote, que via monstros e guerreiros heróicos onde o Sancho apenas vislumbrava moinhos de vento, também nós, nos excedemos, por vezes, ao arquitectar histórias de camaradas, que o destino juntou um dia, numa companha do Alto Alentejo.

A intenção – para nós essencial – é boa; isso podemos garantir. Pretendemos mostrar aos mais novos e relembrar aos mais vividos, que foram os adultos, daquela época, que caldearam as grandes transformações da Sociedade, dando forma, e fundamento, ao tipo de vida da actual geração.

Na segunda metade do século passado o País despertou; acordou de um longo letargo em que estivera mergulhado. Foram duas Guerras Mundiais, que muito exigiram, sobretudo aos mais humildes – como sempre – e, paralelamente, cá dentro, um regime de força e vistas curtas, importante para consumo interno, mas absolutamente desajustado do que se passava lá fora, no resto do Mundo.

A Beira Baixa e todo o centro do País, vivia dos trabalhos no campo. As gentes, rijas e duras, não ficavam mal, quando se lhes pedia mais que o engenho necessário para os habituais trabalhos de lavoura. Dominavam, muito bem, as tarefas da azeitona, da ceifa, da monda, da poda, da enxertia e dos trabalhos com madeira. Aprendiam, com relativa facilidade, qualquer ofício.

Os beirões que partiram para as Áfricas, Américas e outros pontos mais longínquos da Terra conhecida, singraram na vida; quando, um dia, voltaram para a sua terra, traziam algo de seu, falavam sempre com muita saudade do que deixavam e manifestavam muita satisfação pelo dever cumprido.

Antes de passarmos à análise de cada personagem, deitemos um olhar à cultura da época e ao obscurantismo nessas terras e gentes. Poucos completavam a instrução primária e, só alguns, desses poucos, iam para os Seminários, ou para uma cidade, onde tinham familiares, para o liceu.

Um exemplo, pouco edificante, é o da aldeia onde nascemos: até ao fim dos anos cinquenta não referenciamos qualquer indivíduo formado. Os colégios particulares apareceram, na zona, nos anos quarenta e cinquenta; fez-se luz e começou a abertura ao mundo. Passou a valer mais um curso do que uma courela; as raparigas deixaram de estar votadas a simples parideiras de filhos e substitutas do homem, nas lides agrárias, quando este se fazia à vida, fora da terra.

Nas décadas de setenta e oitenta a sociedade foi abalada por grandes transformações; a “inteligência” que se vinha acumulando e a força capitalizada na mudança de regime político, deram ao povo a dimensão mais correcta das coisas humanas. De repente, toda a vida mudou e até as ceifas, que inspiraram estas histórias, deixaram de exigir o esforço, sobre-humano, que, ao homem, era exigido.

Olhar para os tempos da nossa meninice, abstrair do stress – neologismo usado para definir muitas coisas que naqueles tempos não existiam – e recordar o que nos parece cada vez mais distante, é, tão só, o nosso objectivo.

Que as “histórias de gente simples” que se seguem, sejam úteis a quem as ler e valham mais que os calmantes, ou outros tratamentos, que o “marketing” impôs às sociedades hodiernas, são o nosso único e sincero desejo.

Humildemente, mas com toda a força e sensibilidade – como diria o melhor dos beirões – deixamos esta pequena obra como uma sentida homenagem àquele que um dia, afirmou, perante os “velhos do Restelo”, lá da pequena aldeia, que a única coisa que queria da vida era que os seus netos viessem a ser muito mais que ele era.

1 A aldeia da Serra, no concelho de Mação, situa-se no limite das terras de Sardoal, freguesia de Alcaravela. Chegou a ter 500 habitantes, em mais de cem fogos. Enquadra-se no limite norte do Distrito de Santarém e pertencia à antiga Província da Beira Baixa. Ali começa a Zona do Pinhal e os costumes e usos são uma amálgama de Ribatejo, Beira Baixa e Alentejo. Recentemente tem-se desenvolvido graças às residências de segunda habitação, de famílias de aposentados, da Terra e de fora.