O penedo das Taliscas, ou penedo rachado, tinha fama de tudo e não tinha nada de concreto.
Dominava o alto da Ladeira do Brejo e era formado por um aglomerado de grandes pedras que, se um dia tivessem sido objecto de estudo aprofundado, teriam, pela certa, sido sepultura de remotos antepassados.
E, com um pouco mais de boa vontade, ter-se-iam feito escavações para descobrir os fundamentos de um castro, encimando o vale exuberante e pródigo de verduras e águas potáveis…
Mas o que era, de facto, era um covil de lobos e raposas, no tempo em que uns e outras habitaram a região.
Depois, com as desarborizações, as queimas e o retirar de pedras, nem coelhos ou lebres por lá andariam.
Coisas dos tempos!...
Uns cem metros abaixo do penedo, já perto da ribeira, passava a rodeira, diariamente seguida pelo moleiro, quando se dirigia para a azenha do Vale do Corisco e, em sentido oposto, quando, já sobre a manhã, com os taleigos cheios de farinha, em vez de grão, subia, de regresso ao povoado, até às casas dos fregueses.
Na azenha não se acabava a aguardente, na cabaça, que levava um pouco mais de litro e meio e era comprada como tal, na voz do taberneiro que deixava sempre uma boca, cada vez maior, segunda queixa do moleiro.
Depois, de golo em golo, em menos de uma semana, ia-se a aguardente da cabaça e lá voltava o Ti’Manel a trazê-la, para fazer a recarga e voltar com ela para a azenha.
Não raras vezes, o excesso de pinga, trazia ideias brilhantes ao cérebro do Ti’Manel.
Iluminações essas que depois divulgava, na taberna, quando outras fontes, à base de vinho, espevitavam a criatividade e soltavam a língua do moleiro.
A maior parte já nem ligava ao que ele ia contando.
Então, contava ele, que ainda há uns dias, aquilo, lá em riba, no penedo das Taliscas, foi o diabo: havia lume por todo o lado, berros e gritarias, pedras a rolar umas sobre as outras e, certamente, o Demónio que comandava toda aquela algazarra, largava pachouvadas pela boca fora, de fazer corar o menos santo dos ouvintes.
Até o macho, ajoujado sob a carga, parou, para presenciar aquelas cenas, enquanto o dono aproveitava uma barreirita do caminho, para se aliviar, lançando fora, uma espécie de revolta que lhe ia no estômago.
De repente acalmou-se tudo e só já deu pelo carriço a comer qualquer coisa aos seus pés.
Encolheu os ombros, deu uma cacheirada no macho e arrancou.
Aí, entrou o Ti’Diogo, que havia muitos anos, passava com regularidade na Terra, esmolando e chegando mesmo a dar umas jornas a quem lhe pedisse, antes de seguir o seu caminho para a aldeia seguinte.
Atrás dum copo, atirou ao moleiro, com ar de desafio:
Mas olhe cá, oh! Ti’Manel, não teria bebido umas goladas a mais, para esvaziar a cabacita e trazê-la para encher?
Não terá sido no dia da trovoada que esteve brava ali para os lados de Alcaravela e os relâmpagos, por trás do penedo, pareciam incendiar tudo?
Não terá mandado parar o macho, para se aliviar e lançar fora?
E o carriço, com a barriga a dar horas, não terá aproveitado o que o dono deitou fora, para comer qualquer coisa?
E, até podia esconder-se, lá no penedo alguma raposa, ou gato bravo que, no contra luar lançassem brilho dos olhos e lhe dessem, a vomeçê, visões?
Eh! Diabos!...
O Ti’Diogo é capaz de ter toda a razão, disse o moleiro!...
Pensando bem, só vejo essas coisas nos dias em que me distraio e abuso da cabacita!...
É capaz de estar certo, homem de Deus, mas olhe que nunca ninguém me tinha explicado essas coisas, com tanta clareza.
E, fazia-me espécie por que raio o macho e o cão paravam sempre ali naquele sítio.
Era, afinal, onde eu mandava, para fazermos um pequeno descanso e retomar forças para o resto do caminho.
Oh! Manel, deita lá mais uns copos, que o raio do homem bem os merece.
Foi, até hoje, a única pessoa capaz de me abrir os olhos e explicar-me tudo.
E, não se esqueça, Ti’Diogo, de passar lá pela azenha, quando andar por aquelas bandas.
Poderemos subir lá a riba, ao penedo e, pela certa, junto a algum covil de coelhos, encontraremos as caganitas e pouco mais.
Apareça, homem!...
Lá o espero!.....