Quando o último dos três irmãos, baptizado de Alva, acordou, já os irmãos rumorejavam para os lados do Nascente.
Desprendeu-se da mãe – lá nas alturas da Serra Grande, aos 1400 metros de altitude, onde a lagoa Comprida lhe deu os primeiros alentos – e, sem grandes forças, deixou-se escorregar por ali abaixo, de fraga em fraga, até ao sopé, onde, finalmente, pôde sentir-se em paz e tomar a sua marcha lenta, por entre uma feérica moldura de campos verdes e floridos.
Deixemo-lo descansar lá por Vila Cova e Sandomil, enquanto vamos ver o que sucedeu aos dois irmãos mais velhos.
O Mondego nasceu mais forte e fez-se ao caminho, em direcção à cidade grande.
Porém, a Guarda, bem segura e alcandorada lá nas alturas, não o deixou rumar a Espanha.
Iniciou, então, uma grande volta, virou costas a nascente, dirigindo-se para poente, em procura das terras baixas que ainda chegara a ver lá dos píncaros em que viera ao mundo.
Foi, por ali abaixo, até às vistas de Coimbra. Dali em diante, velho e refeito das suas bazófias, espraiou-se e entregou-se, finalmente, ao oceano, junto da Figueira da Foz, deixando, como testemunhos e guardiões, o Cabo Mondego e a Serra da Boa Viagem.
O segundo, que lá nas alturas da Estrela recebeu o nome de Zêzere, começou por acompanhar de perto o irmão. Mas não resistiu aos encantos da Cova da Beira e, ao contrário do irmão mais velho que entretanto já perdera de vista, virou para sul.
Cresceu, protegido pela Estrela, sua mãe natural, e pela Gardunha, que observara, verde e bela, mal acabara de nascer. Mais alentado, resolveu atacar as serras a ocidente, já que outro caminho lhe não restava.
E, por entre montes e vales de rara beleza, avançou resoluto deixando encostas de arvoredos intermináveis e alturas cobertas de enormes penedias, até encontrar, atravessado no seu caminho, o grande Tejo que o recebeu, como filho, no termo de Constância.
A partir dali, mais fortes e triunfantes, restava-lhes rumar a Lisboa, a capital digna do seu prestígio e grandeza, não se esquecendo de espalhar benesses e riquezas pelas terras ribatejanas, que percorreram, sem grande pressa.
Pareceria, à primeira vista, que o Alva estava contente e satisfeito, nos campos verdejantes e calmos de Sandomil, mas a chegada de algumas ribeiras e a força do destino, apontaram o caminho do oeste.
Fortalecido e encorajado, lá seguiu, por entre montes e vales, serpenteando e recebendo todas as ajudas que chegavam, até se encontrar, ao cabo de mais de cem quilómetros de voltas e mais voltas, com o Mondego; o irmão mais velho que não chegara a conhecer lá nas alturas da Estrela.
Mas, nunca esqueceu o paraíso que deixou nos baixos da serra-mãe. Cada vale, cada outeiro, cada requebro, serve de assento a belas aldeias, como verdadeiros presépios. E a calma e serenidade, recortadas pelos trinados dos inúmeros passarinhos, que dividem com rebanhos e outros vivos, todas as maravilhas dos arredores, desde os baixos das hortas aos primeiros cumes das encostas.
Sandomil, outrora senhorial, é, ainda hoje a verdadeira sala de visitas do concelho de Seia.
Mais além, as Corgas, uma das últimas aldeias das terras da Guarda. Tudo ali é autêntico, do casario às pessoas, das vertentes cobertas de vegetação às aflorações rochosas, quais guardiões invencíveis, espreitando nos altos.
Realizam-se, anualmente, as festas de Nossa Senhora da Piedade (12 de Agosto), as de Nossa Senhora da Espectação (16 de Dezembro) e as do Sagrado Coração de Jesus. Joga-se ao chinquilho e à malha. Celebra-se a “Amenta das almas”.
Os homens destas terras viram, desde que nasceram, o vivo, esmifrando as touças mais tenras e verdinhas, num qualquer recanto de lameiro, ou os ramos apetitosos e oferecidos, nos requebros das penedias. E, se a sede apertava, água era coisa que não faltava; era ver, gente e bichos, dessedentar-se, mergulhando numa qualquer fonte natural.
As gentes dali não se intimidavam, nem se sentiam prisioneiras de toda aquela cerca de penedias, parecendo despegar-se da serra mãe e rolar por ali abaixo. Viam-nas como a força da sua identidade e o fermento que os haveria de levar a adultos. Nunca viam até aquela portela, olhavam sempre para o que estava para lá dela.
Os homens destas terras da Beira, cruzam montes e vales, ribeiras e torrentes, cavalgando as poldras, ao ritmo dos relâmpagos ou do ribombar das trovoadas. Nunca se dobraram a uma qualquer tempestade e sempre seguiram o seu caminho. Corre-lhe, nas veias, o sangue quente de Viriato e não dobram ante as maiores vicissitudes. Quer estejam na sua terra natal, quer mourejem pelos Congos ou outras Áfricas, ainda que naveguem em mares desconhecidos, ou ambientes hostis, os beirões sabem sempre quem são, de onde vieram e para onde querem ir.
Na sua estatura meã e debaixo da tez morena, que deixa sair as marcas das maresias de fim de verão secas pelos raios tórridos na encosta da serra e os tarós dos invernos que, queimando a pele como as praias do mar, espalham seus brilhos, quentes no parecer, mas gélidos nas entranhas. Nada que afecte a alma das gentes.
Lá nas Corgas, ficou na memória do povo uma figura popular a quem todos conheciam pelo “bispo”. Era um homem muito versátil, amigo do seu amigo, um verdadeiro líder, quer se tratasse de animar um descante, organizar um bailarico, fazer parte de qualquer comissão para benefícios na terra, ou orientar umas averiguações.
Estava em todas, sem ser visto nem achado, e bastava a sua presença para resolver questões, intermediar brigas e sentenciar querelas.
À boa maneira de Viriato - avoengo mais destacado que por aquelas terras andou - era um líder. Era vê-lo, tocando a concertina, no largo da escola, uma vez que no adro da igreja era proibido cantar e bailar, mandando o baile e animando a festança.
Porém, nos seus sete ofícios, vamos encontrá-lo na sua oficina de fazer tamancos, onde muitas vezes esperava pelo filho “Vítaro” que se escapulia para os ninhos e se minava por uma boa chinchada, logo que as novidades despontavam nas árvores de fruto.
Até engordava, o desgovernado, como os gatos e os cães, com os cachos e figos, dizia, em ar de resignação o senhor António de Brito, isto é, “o bispo”.
Quando os gritos de chamamento ecoavam sobre toda a aldeia – Oh! Vítaro!... Oh! Vítaro!... Oh! Vítaro!... – era certo e sabido que o senhor António de Brito estava sozinho na oficina. E o Victor que se fosse preparando para o que desse e viesse.
Era “um bom vivant”, este homem simples, que fazia gala em porteirar, aos sete ventos, o nome do filho e ajudante.
Nunca apurámos porque lhe chamavam “bispo”, pois santo, não seria, e sabia, como ninguém, retirar os seus dividendos da sua presença em tudo o que se passava na terra.
Mas, nem tudo na vida lhe corria bem. Viu partir, ainda novos, os três filhos: dois rapazes e uma rapariga (o mais velho, o Vítaro, nosso conhecido de ninhos e chinchadas, a Lucília, que a leucemia não poupou e, o mais novo, o Custódio que também não teve tempo de chegar a velho).
Apesar disso, sempre deu tudo por um bom baile mandado, ao som da sua concertina e do seu comando:
“Homens ao meio!” – “Mulheres ao centro!” – “Troca o par!” – “Outra vez!” – “Não está mal!” - “Ajeita-te, Rosa!” - “Puxa-a, Chico!”
Mau grado o seu feitio, não se lhe conheceram grandes aventuras. Para além de uma cunhada, que se casou a destempo e gritava, lá de casa, quando ele lhe ia bater à porta:
Já estou metida na cama, não posso atendê-lo!... E acrescentava, em surdina: A porta está no trinco, entre!...
Eram estas, e outras, as causas dos lamentos do senhor António de Brito, que com ar galhofeiro e o maior dos à-vontades, dizia: Já um homem não pode fazer as obras da Misericórdia; a minha cunhada Maria do Céu, nem se levanta para me atender e quando o faz, ainda me pergunta se venho pelo que disse o senhor doutor: A Lucília pode comer “capioca”; leve uma malguinha, dela, para a pequena.
Amigo do seu amigo, teso nas enrascadas em que participava com os rapazes da terra e senhor de mais amigos que inimigos, todos gostavam de acamaradar com ele, ou tê-lo por perto.
Era uma daquelas figuras populares que não precisam falar muito, nem muito alto, para serem ouvidos; que dizem o que querem sem molestar e, raramente, são apanhados em encrencas.
Disfarçam, quanto baste, e dirigem e comandam quem os rodeiam, suprimindo-lhes a capacidade de oposição, ou reacção, antes mesmo que aflorem. Um verdadeiro líder.
Um dia, dois forasteiros, desconhecidos por aquelas paragens, desceram às Corgas e entretiveram-se, pela taberna, jogando à malha e ao chinquilho. Perderam, pagaram as rodadas da praxe, e, quando já se ouviam as vozes da “Amenta das almas”, tomaram atitudes pouco respeitadoras de uma das tradições mais antigas da terra.
Foram crescendo os desmandos, até que, vindo não se sabe de onde, entra em cena o senhor António de Brito, que, sem dizer uma única palavra, encarou os dois rapazolas, estendendo o braço e apontando a porta de saída.
Depois, já na rua, repetiu o gesto, apontando a saída da aldeia.
Vendo os homens que se foram chegando e faziam as costas do senhor “bispo”, os mariolas, mudos e cabisbaixos, meteram os rabinhos entre as pernas e desapareceram, para não mais ser vistos nas redondezas.
Quanto ao senhor António de Brito, retirou-se, sorrateiramente, com as boas-noites e um bem-hajam.
Alguém, disfarçadamente, terá dito: vai a casa da cunhada Maria do Céu, certamente para as obras da Misericórdia. Vá com Deus!...
Aqui já mostrou como se manda, sem ordenar, e dando bofetada com luva de “bispo”.
Foi muito comentada, nos dias seguintes, a atitude do senhor António de Brito.
Porém, quando lhe perguntavam qualquer coisa, respondia:
Cobardes!... Parece que lá em Vila Cova se meteram em desordem, que também já tinham provocado na Lapa dos Dinheiros. Esta gente procura a violência, mas esquece-se que a calma é mais forte que a força, quando bem utilizada!...
Também todos vós sabeis; e estes que aqui estiveram não seriam mais estúpidos, pois reconheceram que um “bispo” tem, sempre, um grande rebanho de fiéis atrás dele!...
E rematava com duas ou três gargalhadas, bem ao gosto das gentes das nossas terras, e lhe assentavam que nem luva, acabando por dizer:
Ah! Querem saber o meu segredo?... Pois aí vai:
O meu segredo? É muito simples!
Olho, a todos, bem no fundo dos olhos, e vejo-os, com o coração…