Há coisas que vêm não se sabe de onde e acabam diluídas no tempo, sem perderem a força e todo o rigor simples e adequado, que os usos e costumes do povo lhe conferem. Estão, neste caso, as alcunhas, geralmente mal aceites, mas após a força da idade e o feitio do costume, passam a fazer parte integrante das personalidades que identificam e, na maior parte dos casos, acabam por assentar que nem luva.
Na escola da aldeia, a Senhora Professora não gostava de ouvir chamar ninguém pela alcunha e cansava-se a explicar que se puseram um nome às pessoas não era preciso, nem bonito, baptizá-las, outra vez. Porém, quando um dia estava a falar no assunto, o Alberto, a quem chamavam “o Rachado”, disse:
Senhora Professora, eu cá não me importo nada que me chamem “Rachado”; já o meu pai assim é conhecido e segundo me disseram também o meu avô e o seu pai e avô, assim eram chamados. Parece que quando havia discórdias, negócios empancados, discussões intermináveis e outras encrencas do género, lá eram chamados os “Rachados” para partir diferenças, pelo meio, e tudo acabava por se resolver. Acho que é prestigiante, Senhora Professora.
O “Carola”, que não gostava de ficar calado, levantou-se, na carteira, e sentenciou: eu acho que o “Rachado” tem razão, se for verdade o que ele diz. Mas, Senhora Professora, porque será que quando a senhora passa lá em frente da taberna os mais crescidos param e dizem: Que grande traço! Será esta a alcunha da nossa Professora? E, voltando-se para a classe, sobretudo para o lado dos mais velhitos, acrescentou, à guisa de resposta: a mim não me parece, pois traço é que ela não é; ainda se dissessem curva, ou mesmo curvas, eu percebia. Agora traço!...
A maior parte ficou impávida e serena, mas os mais atrevidotes faziam figas, às escondidas, para ouvirem as explicações da Professora, que não tardaram: O que referem não é uma alcunha; chama-se uma graçola, um piropo. Não se aceita como uma alcunha, mas recebe-se como um elogio e até se pode agradecer, se o ouvirmos. Não é mais que uma forma brejeira de dizer: que bonita, que jeitosa, que elegante, que bela!... Nunca ouvi; mas se ouvir, agradeço, delicadamente, a quem o disser! Mas vamos aproveitar a lição do que acabamos de ouvir:
As alcunhas sempre existiram e sempre hão-de existir. Normalmente, quanto mais as pessoas se arreliam, mais força elas têm, porque se ouvirmos e não ligarmos, esses nomes acabam por não pegar.
Há alcunhas que são maliciosas e ofensivas, como por exemplo quando referem defeitos físicos, incapacidades físicas ou mentais, comparações com animais; não devem ser, de forma alguma, usadas. Cada um é como é e tem de ser respeitado e ajudado e nunca ofendido.
Há alcunhas que são até muito honrosas; parece que “os Rachados”, por exemplo, só terão que se orgulhar do prestígio que foram tendo ao longo dos tempos. Não vos parece que alcunhar um de vocês de “príncipe”, “doutor”, “engenheiro”, “bate-solas”, “amassa massa”, “artista” e outros nomes que por aí são ditos na nossa terra, só honram e dignificam? Porém agora passamos a outras matérias e um dia destes continuamos. Cada um vai pensar no tema e até pode fazer uma lista com as alcunhas boas e outra com as que não se deverão chamar a ninguém.
Mas havia na sala, na 4ª classe, o “Mal-quadrado”, que ao contrário da maior parte dos colegas afinava, a sério, quando o chamavam por esse nome. É que, dizia ele, já lhe tinham dado mais de vinte explicações e nenhuma o convenceu de ser a origem da alcunha. Por isso, enquanto não lhe explicassem direitinho de onde provinha o nome, quem o usasse arriscava-se a ficar com algum olho negro, ou a ter de limpar o sangue do nariz, uma vez que o Abílio era o mais forte e corpulento da sala.
Mas, naquele dia o Abílio, fingindo não se incomodar com o tema da conversa, perguntou: Senhora Professora, chamam-me o “Mal-quadrado”, como, aliás, sempre chamaram ao meu pai. Ainda ninguém foi capaz de me explicar as origens de tal nome; o meu pai diz-me que não lhe adianta nem lhe atrasa, que aceita a ideia de a alcunha derivar de um avô antigo que cantava à desgarrada, de festa em festa e também nas feiras. Falava com muita propriedade e ligava mais importância ao que dizia do que à forma como o dizia. Parece que enquanto outros quadravam direitinho todos os versos e rimas, esse meu avô cantava e dizia em forma poética, mas “mal-quadrada”. Daí, o “Mal-quadrado”, ser anunciado, como um dos artistas desta ou daquela festa, ou feira, e até como atracção principal. Há lá, em minha casa, uma espécie de panfleto, com o programa de uma dessas desgarradas, que refere que a atracção do evento é o “incomparável Mal-quadrado” e, tanto quanto sei é esse o fundamento, mais aceitável, que meu pai encontrou para a alcunha.
Tenho também ouvido dizer que um nosso antepassado, militar muito importante numa guerra no tempo dos nossos reis, foi um dia derrotado, numa batalha, porque não preparou as tropas num quadrado perfeito, conforme as ordens do Rei. Acabou por ser condenado e, durante os anos que passou na prisão, tinha que desenhar um quadrado em cada dia. Quando à noite vinha o comandante para ver o desenho e via o quadrado mal feito, dizia: Só sairás no dia que fizeres um quadrado perfeito e a partir de agora passas a ser conhecido pelo “Mal-quadrado”. E assim ficou.
Poderá a Senhora Professora descobrir alguma coisa e na próxima aula, em que voltarmos a falar de alcunhas, esclarecer-me e explicar a todos os que pensam que eu me importo com o nome, o que ele quer de facto dizer? Se calhar vão ficar muito surpreendidos os que pensam que é uma alcunha de gente que não vale nada e acho muito bem que passem a ter inveja de não ter uma designação tão honrosa.
O João Alves, cuja alcunha era o “calça larga”, morava perto do Ti´Fastino, único homem da terra a usar umas lunetas redondas em riba do nariz, quando consultava uns rolos de papéis velhos que trouxera dos tempos em que andou na Marinha.
Se lhe falavam, respondia por meias palavras e raramente levantava os olhos dos livros. Pouco mais falava que quando dava a salvação a quem passava. Tinha fama de sábio e por isso o “calça larga”, aproximou-se do Abílio e perguntou-lhe porque não ia com ele, lá a casa do velho “Fastino”, perguntar-lhe se sabia alguma coisa sobre a origem da alcunha da família dos“Mal-quadrados”. E lá foram os dois.
O Abílio, depois de dizer quem era, explicou que a Senhora Professora tinha pedido que cada um soubesse o mais que pudesse sobre as alcunhas da terra e como lhe chamavam o “Mal-quadrado”, ia ali pedir à pessoa que devia saber mais dessas coisas antigas que o ajudasse.
O velho levantou os olhos, mostrou os livros que tinha numa prateleira logo depois da porta e disse aos dois rapazitos: muitos dizem que eu sou o “sábio”, outros chamam-me “coca-bichinhos”. Há ainda os que dizem outros nomes, como “maluco”, “apanhado dos climas”, e sei lá que mais. Isso nada me importa, pois só sei o que os muitos anos que já vivi, muitas terras que visitei, muitas pessoas com quem falei e, sobretudo, muitos livros que li, me ensinaram. Mas, sobre o nome “Mal-quadrado” nunca li nada em nenhum dos meus livros…
Porém, e como vejo pela vossa cara que merecem saber o que eu fui descobrir, vou dizer-vos o que se encontra nos livros dos registos da igreja, nos assentos dos livros de baptizados e casamentos, nas escrituras do notário e em papéis que fui juntando ao longo da minha vida. E, Abílio, não é esse o teu nome? Vais ficar muito orgulhoso, pois a tua família é, tanto quanto dizem os registos, uma das mais antigas da nossa terra. No princípio foi dona de muitas terras que chegavam daqui até ao rio Tejo, nas proximidades de Abrantes. O primeiro senhor destas terras chamava-se Abílio Mendes das Serras, morreu há mais de oitocentos anos, numa batalha, contra os mouros, nos arredores de Santarém, onde tinha ido, com os seus homens, ajudar o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques.
Depois, de documento, em documento, vai-se seguindo a família dos Mendes das Serras que foram recompensados com as terras destas zonas, que naqueles tempos estavam cobertas de grandes matagais e onde se apanhava ouro nas ribeiras. Numa carta de 1254 o rei D. Afonso III, agradeceu ao senhor das terras “de riba de Aurantes” o empenho que teve na defesa das mesmas e mandou recompensá-lo com quatrocentas moedas de prata para que reparasse as defesas do “quadrado” das suas terras. Foi a primeira vez que vi esta expressão, que nem sei se tem alguma coisa a ver com a vossa alcunha dos tempos modernos.
Mais tarde, em carta de D. Gualdim Paes, mestre da Ordem dos Templários, que ao tempo era senhora de grande parte do centro de Portugal, é recomendado ao alcaide do castelo de Almourol que dê ajuda em mestres e valores ao senhor Mendes das Serras para que possa garantir a defesa do “quadrado” das suas terras, conforme vontade d’El-rei.
Na conquista de Ceuta, havia uma pequena falange de pessoas das terras do “quadrado do Senhor Mendes das Serras”. Como recompensa da bravura desses homens é dado ao senhor barão das Serras o morgadio de Belver e o direito de recrutar gente nessas terras, que passavam a fazer parte das terras do “Quadrado”.
Consta que o “senhor barão das Serras”, se sentia bem num pequeno requebro de uma das primeiras serras a norte do rio Tejo, nas terras de riba de Aurantes, porque
estava no centro, tinha comunicação visual com Aurantes, ajudava nas ligações com a Ordem em Tomar e via também as terras de Belver. Daqui, concluí eu, que poderia ser, por aqui, que estivesse a casa mãe do “barão Mendes das Serras” que vivia no meio do “quadrado das terras”.
Quanto ao “Mal-quadrado” vi pouca coisa, mas há uma referência a um casamento, nos registos da paróquia de Abobreira em que se diz que foram testemunhas um cavaleiro a que chamavam de “Mal-Quadrado” e outros homens de armas do senhor barão do “quadrado das terras”.
A partir da época dos descobrimentos não vi mais nenhuma referência ao barão, às terras, ou à família. Nos “Nobiliários e livros de linhagens não vi referência importantes”; porém, nas lutas liberais, aparece ao lado das forças leais a D. Pedro, um “senhor de abastadas terras, nas imediações do Tejo, a montante de Abrantes, com uma contribuição generosa para a causa liberal.” O referido senhor identificou-se como “senhor das terras dos Mendes das Serras”, definidas como “Mal-quadrado das terras”. Não pude averiguar porque aparece aqui o “Mal”.
Como vês, Abílio, talvez devessem alcunhar-te de barão, ou fidalgo, ou herói. Mas isso, nos nossos tempos pouco vale e vamos admitir uma de três coisas, se não te importares e a vossa Senhora Professora, concordar, também:
Ou a tua família é descendente da nobreza e “Mal-quadrado” pode ser um título e não uma alcunha, que alguns pensarão ser depreciativa. Cada um sentirá honra ou inveja de não ser ele o “Mal-quadrado”.
Ou, como tenho para aí nuns panfletos antigos, havia um trovador, poeta popular, contador de histórias e recitador de rimas que não quadrava muito bem as suas obras e acabou ficando conhecido pelo “Mal-quadrado”. Ser descendente de um artista, ainda que não rimasse lá muito bem, também não é desonra nenhuma. Verás que passas a ser mais invejado que gozado.
Ou, algum avoengo teu fez mal algum quadrado e isso implicou qualquer coisa que não conhecemos. Não haveria, por esta hipotética causa que fazer uma alcunha. Assim, os que estiverem neste grupo, não serão mais que ignorantes que não sabem o que dizem. A esses, desprezas.
Sendo assim, se não te importas, para mim passas a ser o “Mal-quadrado”, herdeiro digno de uma geração de homens valentes e destemidos que nos meus tempos de menino e moço ainda conheci. Esta revelação não vem nos livros, mas lembro-me de um teu tetravô, que um dia se recusou a fazer um trabalho porque na encomenda se dizia ser um quadrado e na verdade era um rectângulo. Uma coisa tenho a certeza: és descendente de homens muito direitos; parabéns!
Muitos anos mais tarde, nos anais das recordações da Senhora Professora, foi encontrada vasta matéria que, pelas coincidências, se deve basear em longas conversas com o velho “Fastino” das lunetas.
domingo, 31 de julho de 2011
Regresso às"historias de gente simples"
Caros seguidores do Blog e leitores das "Historias de gente simples"
Estou de volta após um interregno em que não deixei de escrever mas
andei ocupado com outras actividades.
Penso que a partir de agora, publicarei, mensalmente, três "histórias",
alternadas com outras
três "páginas soltas". Espero que continuem a enviar as vossas críticas,
que, desde já, agradeço, bem como os "e-mail".
Ah! Continuarei a escrever segundo a ortografia que aprendi e sempre ensinei.
Prof José Valente
Estou de volta após um interregno em que não deixei de escrever mas
andei ocupado com outras actividades.
Penso que a partir de agora, publicarei, mensalmente, três "histórias",
alternadas com outras
três "páginas soltas". Espero que continuem a enviar as vossas críticas,
que, desde já, agradeço, bem como os "e-mail".
Ah! Continuarei a escrever segundo a ortografia que aprendi e sempre ensinei.
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